Recentemente foi resgatada a crítica pretensamente materialista à epistemologia da psicanálise, comparando-a a homeopatia e questionando sua validade enquanto ciência, aproximando-a de um saber religioso. A obra é de Michel Onfray, seu último livro polêmico, Le Crépuscule d'une idole, l'affabulation freudienne. O argumento não é nada novo e parece realmente dominar um grande setor da esquerda. Mas da onde vem o preonceito metodológico à epistemologia e clínica psicanalítica? Sobretudo, porque frequentemente ele se aponta como uma "crítica materialista"?
Para responder a essas perguntas, em se tratando de um ataque à epistemologia da psicanálise, onde encontramos uma teoria do conhecimento na psicanálise? Ou, o que não é a mesma coisa, de onde a psicanálise retira sua teoria do conhecimento?
No dia 16 de agosto de 1893, falece em Paris o Dr. J.M. Charcot, Médico, Psiquiatra e Mestre de Sigmund Freud. Em ocasião do fato, Freud publica, em agosto do mesmo ano, um texto em homenagem ao trabalho clínico e teórico de Charcot, em especial pela sua influência para a fundação da psicanálise. Como indica Freud, Charcot teria sido o primeiro a se debruçar sobre uma série de quadros psiquiátricos ignorados pela psiquiatria e pela medicina teórica da época. Dentre eles, Charcot foi o primeiro a perceber que os sintomas histéricos, manifestos em grande parte no corpo (paralisias, tiques, etc), estavam ligados a encadeamentos lógicos de representações do paciente que remontavam a um fato ocorrido na vida do paciente. Fato este de que raramente se lembravam os histéricos e histéricas. De sorte que estes encadeamentos inconscientes revelavam uma recusa do eu do paciente em lidar com o fato ocorrido. O fato, permanecia assim, velado ao eu do paciente, porém ainda presente por meio destas representações "encarnadas" no sintoma corpóreo.
Mas se os resultados das pesquisas de Charcot (em grande parte por meio do método hipnótico) deslumbravam Freud, por óbvias razões, não menos o deslumbrava o método empregado por Charcot. Segundo Freud, o médico francês "acostumbraba considerar detenidamente uma y outra vez aquello que no lê era conocido y robustecer así, dia por dia, su impresión sobre ello hasta um momento em el qual llegaba de súbito a su compreensión. Ante su visión espiritual se ordenaba entonces el caos, fingindo por el constante retorno de los mismos sintomas, surgiendo los nuevos cuadros patológicos, caracterizados por el contínuo enlace de ciertos grupos de síndromes. Haciendo resaltar, por medio de cierta esquematización, los casos complejos y extremos, o sea los “tipos”, pasaba luego de éstos a la larga serie de los casos mitigados; esto es, de las formes frustrées, que, teniendo su punto inicial en uno cualquiera de los signos característicos del tipo, se extendían hasta lo indeterminado"*.
Em suma, o método charcotiano se resumia à tríade "observação clínica - conceitualização - inferência clínica". Ou seja, o método charcotiano, e sua teoria do conhecimento, se tratava de um processo que tinha por origem e finalidade a prática clínica, mediados (origem e fim) pela conceitualização teórica (enquadramento conceitual das síndromes) a que Charcot chegava por meio de uma certa "visão espiritual", segundo Freud.
A ênfase deste método na prática é explícita."Charcot no se fatigaba nunca de defender los derechos de la labor puramente clínica, consistente en ver y ordenar, contra la intervención de la medicina teórica". Quando um de seus discípulos, certa vez, lhe dirigiu a seguinte demanda "isso não pode ser, pois contraria a teoria de Young-Helmholtz", o mestre lhe respondeu "La théorie c'est bon, mais ça n'empeche d'exister", ou seja, a teoria é boa, mas isto não deixa de existir: sendo este isto aquilo que é capturável apenas pela vivência (e convivência) clínica, aquilo que não está mapeado em nenhuma teoria pré-estabelecida.
Em outras palavras, todo método charcotiano consistia na observação sistemática realizada pela prática clínica dos fenômenos frequentemente ignorados pela medicina teórica, e ignorados porque não podem ser explicados em concordância com os pressupostos básicos de tal ou qual teoria. Estes fenômenos são então sistematizados posteriormente por meio de um trabalho teórico de forma que se encontrem as relações mais íntimas entre eles de forma que acabem constituindo, uma porção deles, um só quadro sintomal, uma só "síndrome". O que então permite o retorno à prática para reordenar os fenômenos e ajudar na melhor compreensão das formes frustrées os sintomas que frustravam o enquadramento conceitual, que resistiam à racionalização (ou simbolização). Tudo se passa, para Charcot, como se houvesse duas dimensões irredutíveis entre si no conhecimento: a dimensão prática/clínica, e a dimensão teórica. Duas etapas do conhecimento que jamais se confundem, mas que não existem independentemente uma da outra.
Mas onde mais encontramos uma postura "antiteórica" similar e que, surpreendentemente recorre à mesma tríade prática-teoria-prática proposta por Charcot? E inclusive postulando um mesmo corte no saber, entre as dimensões prático-perceptiva e teórico-conceitual? A resposta deve ser imediata: em Sobre a Prática de Mao Tsé-Tung. Como demonstra a introdução de Mao ao texto de julho de 1937: "havia um certo número de camaradas em nosso Partido que eram dogmáticos e que por um longo período rejeitaram a experiência da revolução chinesa, negando assim a verdade de que o Marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação".**
Mao não só rejeita a postura dogmática ou teoricista de alguns camaradas de partido como também funda uma teoria materialista do conhecimento fundada na mesma noção de observação de fenômenos - teorização/conceitualização - inferência prática. É inclusive repetido o tema charcotiano de retorno à prática para a melhor compreensão das formes frustrées (literalmente: formas frustradas). Como diz Mao "se um homem deseja ser bem sucedido em seu trabalho, isto é, atingir resultados antecipados, ele deve fazer suas idéias corresponderem com as leis do mundo externo objetivo; se elas não correspondem, ele fracassa em sua prática. Depois de fracassar, ele aprende suas lições, corrige suas idéias para fazê-las corresponderem às leis do mundo externo, e pode assim transformar fracasso em sucesso; é isto o que quer dizer 'o fracasso é a mãe do sucesso'".
Mas alguém poderia objetar: que Mao e Charcot estejam de acordo em construir uma teoria do conhecimento baseada na tríade prática-teoria-prática em que o fracasso prático se põe como um desafio teórico que tem como finalidade melhorar a prática, transformando frustração em sucesso, dando atenção justamente aos fenômenos práticos ignorados pelo saber posto, tudo bem. Mas a tal "visão espiritual" de Charcot não o diferencia radicalmente do método eminentemente materialista de Mao? Não é verdade que Charcot seria extremamente idealista ao postular que a mudança qualitativa do saber teórico ocorre como que por passe de mágica, com o surgimento expontâneo de uma visão?
É aqui que a coincidência se torna ainda mais surpreendente. É que para sustentar tal estrutura triádica do conhecimento, Mao, como Charcot, distingue duas dimensões do conhecimento humano: a dimensão perceptiva e a dimensão cognitiva. Segundo Mao a percepção só consegue captar os fenômenos no caos, na relação exterior que as coisas guardam entre si, ou seja, relação não-sistemática entre as coisas. Somente o conhecimento cognitivo, que diz respeito à conceitualização e teorização das percepções sensoriais práticas, pode capturar (por mais paradoxal que pareça) a relação interna entre as coisas, aquela que pode sistematizar, enquadrar e conceitualizar os fenômenos. Citando o próprio Lenin, Mao afirma "todas as abstrações científicas refletem a natureza de forma mais profunda, verdadeira e completamente". Mas como exatamente, para Mao, o conhecimento avança do aspecto perceptivo para o cognitivo, o único capaz de capturar a "essência" do mundo material exterior e objetivo?
Segundo Mao: "Conforme a prática social continua, as coisas que fazem emergir as percepções sensoriais e as impressões do homem, no curso de sua prática são repetidas muitas vezes" - como nas observações clínicas de Charcot - "então uma mudança súbita ocorre no cérebro, no processo de cognição, e conceitos são formados [...] una as sobrancelhas e um estratagema virá a mente".
Mas que quer dizer este desparate? Seria Mao um idealista enrustido? Na verdade o que significam a "visão espiritual" de Charcot e o "estratagema" de Mao se referem à mesma noção da Intuição na dialética hegelo-marxista: uma decisão em ato que funda uma novidade e que Alain Badiou, filósofo maoísta francês, identifica como sendo o próprio cerne do pensamento ontológico: uma decisão que rouba o lugar do indecidível, do indecifrável pelo saber posto, o saber do stablishment. A esta decisão se dá o nome de axioma: uma sentença em ruptura com a lógica do mundo existente e que abre caminho para um processo-verdade que comprova retroativamente a validade da sentença a partir da fidelidade em ato (prática) a ela.
Tal como o poema que funda e funde um novo mundo de relações entre coisas, em oposição à lógica da prosa, eminentemente dianóica (= organização e encadeamento lógico de argumentos), o axioma (visão espiritual, estratagema, ou qualquer outro nome) funda e funde relações externas e caóticas entre as coisas que o saber "em prosa" ou dianóico tende a ignorar. Em se tratando de uma lacuna radical entre conhecimento perceptivo (prática) e conhecimento cognitivo (teórico) a única possibilidade de "avançar" nesta lacuna, é a fundação de um axioma, "por conta e risco" do sujeito que o permite organizar o caos do mundo objetivo.
Estamos tratando aqui de um argumento contrário à glosa dominante da filosofia da linguagem: esta decisão axiomática, que Badiou define como sendo o cerne do pensamento ontológico, precede a lógica. E não o contrário. Portanto, é a decisão sobre as leis da natureza (partindo, é claro da observação prática), que funda as leis da natureza. O que explica o paradoxo de Lenin em afirmar que somente o conhecimento teórico consegue compreender profunda, verdadeira e completamente o mundo objetivo.
Mas o que há de materialista nisto? Como nos diz Zizek, o materialismo é a única resposta possível para fenômenos "imateriais". Isto porque é próprio ao materialismo dialético considerar a irredutibilidade entre a razão humana, e as leis da natureza, uma lacuna tão radical que exige um "salto de fé" para que haja alguma avanço na compreensão do mundo objetivo. A postura idealista, é precisamente aquela que "coisifica" ou reifica tais fenômenos imateriais na forma de entes transcendentais, amarrando uma lógica dianóica de mundo que só poderia existir caso o mundo objetivo tivesse sido criado por um ser virtuoso e plenamente consciente.
É bom lembrar, entretanto: que"a religião seja o ópio do povo", não quer dizer que não haja um lado teológico no materialismo. Que leva Benjamin a afirmar que a teologia é a mão que anima o boneco do materialismo histórico. (E que leva Plínio A. Sampaio, candidato do PSOL para presidência da república a firmar seu "marxismo com sotaque cristão"). É deste salto de fé que se trata. Desta produção de axiomas que abre o caminho para a verdade e que une profundamente marxismo e psicanálise: a fé na infinitude do homem. Pois o homem é infinito porque é capaz de produzir axiomas.
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*Freud, Charcot. Em Obras Completas. Vol.1.
**Mao, On Practice. Disponível em www.marxists.org