domingo, 1 de novembro de 2009

Kelsen no divã - Parte II

No último post lancei a idéia de lacanizar Kelsen para podermos pensar, em seguida, qual seriam as consequencias de dialetizar a norma fundamental em relação a sua função frente à idéia de ordenamento jurídico.

Em termos psicanalíticos, todo o aporte kantiano de Kelsen para justificar o ordenamento jurídico, sua validade, baseado num a priori jurídico racional se assemelha à lei da castração, ao pai primitivo freudiano: ela é a norma que deve ser pressuposta e, portanto, é ahistórica, não transformável, não dialetizável permanecendo sempre a mesma em qualquer época ou contexto histórico: devo pressupor que a existência da norma que funda o ordenamento jurídico em que estou inserido. E, é claro, esta norma é impossível de ser apontada, de ser vista, manuseada ou contemplada: não é material, é metafísica.

É claro que esta estaticidade da norma fundamental é condizente com a tentativa kelseniana de estabelecer os ditames científicos de uma ciência lógico-formal de funcionamento de todos os ordenamentos jurídicos existentes no mundo. A norma fundamental, neste sentido, é um pressuposto "lógico-formal-transcendente" que dá conta de explicar a "pura forma" (com o perdão da expressão) do funcionamento de um ordenamento jurídico. Ljubomir Tadic (jus-filósofo esloveno) acerta ao dizer que tal lógica formal kelseniana pode muito bem ser enquadrada na crítica que Hegel faz à lógica matemática como lógica formal, uma lógica que não diz nada sobre o conteúdo da coisa em si. Neste sentido a "teoria pura" kelseniana pode até falar a verdade (assim como faz a matemática) mas é uma verdade puramente tautológica. Sim 2+2 = 4... mas e daí? Ok, toda norma deve funcionar conforme um pressuposto de validade inquestionável... mas e daí?

O problema, portanto, não é que Kelsen "erre" ao formular sua teoria pura. Neste sentido, tenho a impressão de que muitas das críticas a Kelsen não se atém ao fato de que a Teoria Pura do Direito enquanto lógica formal jurídica não é a mesma coisa que Direito. O Direito diz respeito a um ordenamento jurídico específico que como tal é ideologia - e não estou falando isto simplesmente a partir de Marx, mas é o próprio Kelsen quem reconhece o caráter ideológico do Direito - e que portanto se funda em valores morais, políticos e sociais históricamente localizados. A "Teoria Pura do Direito" é a tentativa kelseniana de elaborar uma ciência lógica e formal de funcionamento de qualquer Direito, uma ciência pura (e neutra) que permita localizar como um "Direito" em qualquer época, em qualquer sociedade, independentemente de seu conteúdo ideológico vai funcionar.

E é claro que o que Kelsen encontra de comum em todos os ordenamentos jurídicos é o problema da validade, o problema, no final das contas, de como eu, sujeito de direitos de um ordenamento específico, sei que a norma que sigo ou deveria seguir é válida. E a solução é, obviamente, o pressuposto metafísico de que devo cumprir a norma porque devo cumprí-la.

Aqui aparece o verdadeiro problema da lógica formal kelseniana: o seu "problema" é justamente seu maior êxito: ela permite analisar indiferentemente tanto um ordenamento jurídico democraticamente eleito, quanto um regime golpista usurpador, quanto um regime revolucionário e emancipatório. A "neutralidade de kelsen" o leva a adotar uma posição neutra frente a Stalin, Hitler e qualquer liberal-democrata.

Voltando à norma fundamental como "pai primitivo" da teoria jurídica kelseniana, e se, em vez de pensarmos o pressuposto de validade de um determinado ordenamento como sendo uma norma pressuposta, metafísica, como o centro irradiador de validade incorruptível pairando acima dos ordenamentos jurídicos concretos, dialetizarmos esta norma. Em outras palavras, e se fizermos a pergunta hegeliana básica: como a norma fundamental como "a validade" olharia para si mesma? Ela não teria de lançar-se para fora de si, portanto, ela não teria de cair para fora da própria validade para olhar para si mesma?

Dialeticamente falando, o que falta na tal "norma fundamental" é justamente o antagonismo que lhe corta de dentro, o fato de que ela já contém o seu contrário, a premissa dialética fundamental. Ela empresta validade a todo o ordenamento jurídico, mas a ela própria nada empresta validade, ou até mesmo: ela se apóia numa violência fundamental (enquanto a violência possa ser entendida aqui como o oposto de validade).

Em termos lacanianos: o significante-mestre que é a lei que instaura a linguagem para o sujeito, que lhe permite falar e, portanto, articular todos os outros significantes ordinários. Ele próprio um significante como outro qualquer com a peculiaridade de que ele não tem "sentido", ele é apoiado num "não senso" fundamental. E isto porque este significante é dotado de um antagonismo que lhe corta de dentro, de uma não-coincidência consigo mesmo. Partindo deste raciocínio lacaniano, então para que devemos localizar a norma fundamental que empresta validade a um ordenamento fora do próprio ordenamento? Não é possível dizer, neste sentido, que a constituição é o significante mestre de todo o ordenamento jurídico?

Neste sentido ela empresta validade a todo o ordenamento mas, ela própria é dotada de um não-senso fundamental, ela própria não é válida e nada pode dizer que ela o é. Sendo toda constituição como lei que instaura o funcionamento de um Direito específico, uma violência fundamental.