terça-feira, 16 de março de 2010

Bartleby e Mao: sobre dogmatismo e prática.

Zizek propõe frequentemente que o que deveria orientar a esquerda, nos tempos confusos do capitalismo pós-moderno, seria a política de Bartleby, a política do preferiria não, toda vez que uma ação prática revestida de demandas éticas, nos fosse proposta: "então você fica aí discutindo Marx, Hegel ou Lacan?" ou então "enquanto vc planeja a sua revolução socialista discutindo concepções de partido ou de militância" e a conclusão fatal: "pois saiba que milhares de pessoas passam fome e vc vai ficar aí, sentado e discutindo, sem fazer nada? Levante-se! Faça alguma coisa!".

Para Zizek, numa forma de "astúcia da razão" do capitalismo contemporâneo, ou seja, na forma como a Universalidade do capitalismo se transformou nas últimas décadas do século XX, demandas aparentemente "éticas" como essas são feitas o tempo todo. Isso principalmente porque as consequencias do Evento de 68, ou antes, daquilo que se diz serem os Eventos, esquecendo seu lado político radical (o maoísmo) e dando ênfase somente aos seus aspectos mais secundários e por vezes ridículos, de libertação sexual, psicodelia, rock'n roll, ou qualquer coisa do tipo, isto aliado à lógica multiculturalista e pós-moderna como lógicas culturais do capitalismo transnacional produziram uma lógica implicitamente "ética" e "libertadora" do capitalismo contemporâneo. Um exemplo claro, segundo Zizek, são as propagandas de automóveis: há alguns anos, as propagandas de automóveis eram muito mais "objetivas" e "frias" do que as propagandas de hoje. Antigamente: "Compre o carro X: ele é o único que tem pneus de borracha vulcanizada, motor V8, refrigeração dupla, etc". Hoje: "Compre o carro X" e então uma série de imagens do carro correndo na lama, num ambiente plano, aberto, com pessoas cantando clássicos da música pop e do rock que falam sobre a liberdade, realização pessoal ou, no último exemplo que vi, pessoas assoviando "Forever Young/I wanto to be forever young!".

Como diz Zizek, nessa nova fase do capitalismo, o lado obsceno da cultura tem sido cada vez menos o sexo e a sexualidade e cada vez mais o trabalho. Fenômeno muito bem observado em Hollywood: quanto mais vemos cenas cada vez mais próximas do the real thing sexual*, menos vemos cenas em que aparecem pessoas coletivamente trabalhando, fábricas, linhas de montagem etc. Ou, quando vemos, geralmente nos filmes de James Bond, a cena do trabalho está frequentemente ligada a idéia de um trabalho criminoso e, é claro, 007 tem de explodir de uma só vez a linha de produção, e voltar para a ordem do prazer, da liberdade e da libido, restaurando a fantasia nossa de cada dia em que o trabalho já não aparece.

Essa dimensão aparentemente mais "libertária" e libidinal do capitalismo contemporâneo sustenta também uma aparência mais "ética" do capitalismo: não só o ideal ascético e abstêmio do capitalismo antigo é substituído por um idal de gozo menos "frio" e mais "humano" do que a sua antiga lógica protestante, mas também pensamos mais no outro, em como lucrar com mais consciência, em um "capitalismo com uma face humana". Então vemos as constante demandas do tipo "faça alguma coisa!".

A conclusão de Zizek é que diante dessas demandas devemos nos servir da política de Bartleby, personagem de O Escrivão de Melville que, a cada ordem recebida no emprego por seus superiores respondia calmamente: "preferiria não!". "Em vez de ficar aí sentado discutindo Marx, Freud ou novas concepções de Partido ou Militância, levante-se e faça alguma coisa!". A que responderíamos calmamente: "preferiria não!". Ou seja, antes de termos um mapeamento claro do que seja o capitalismo contemporâneo, quais são as estratégias da esquerda hoje, como funciona a ideologia, a relação entre democracia e totalitarismo, não devemos ceder a qualquer chantagem ética de práticas conscientes uma vez que muitas delas (A Ecologia principalmente) já são perfeitamente cooptadas pelo capitalismo e possibilitam sua reprodução.

Ora, mas essa necessidade de teorizar quer dizer que, simplesmente, não devemos agir?

Mao, em seus dois textos, Sobre a Prática e Sobre a Contradição ataca entre certos companheiros do Partido Comunista Chinês em 1937 dois problemas que ele próprio faz questão de frisar como problemas graves: 1) o Dogmatismo, posição teórica que força seus conceitos na realidade e despreza a realidade e a prática como o processo sobre o qual se pensa e para o qual está dirigida a teoria e 2) O Empirismo como a posição simetricamente inversa, a posição que despreza a atividade teórica e a pesquisa, em favor da pura prática.

É que Mao estabelece que o conhecimento se dá em dois níveis: o nível perceptivo ou externo, aquele em que vou até um espaço de ação, experimento a realidade (converso com as pessoas, conheço a geografia do lugar, coleto dados aparentemente sem relações uns com os outros) e o nível conceitual ou interno, em que refletindo e teorizando, consigo compreender a relação entre os dados de forma mais interligada ou conexa (interna para usar uma expressão do próprio Mao).

O Dogmatismo ao desprezar a experiência perceptiva da realidade acredita poder pensar só o pensamento. Ele tem a teoria, que deveria orientar aquele processo de interligar dados colhidos da experiência, como um fim em si mesmo, como uma adoração. Em maoês: quer passar ao segundo estádio do conhecimento, o conceitual, pulando o primeiro, o perceptivo. O Empirismo, por sua vez, permanece no primeiro estádio, no perceptivo, continuamente, não consegue avançar da prática para a reflexão da relação mais profunda entre a totalidade das coisas, como disse o camarada Yuri a respeito do pensamento crítico-ideológico, e portanto não consegue orientar melhor sua própria prática. Toda prática se torna, assim, expontânea, imediata, e pode falhar seriamente no que corresponde a estratégia global da emancipação comunista. Para Mao o movimento deveria ser, portanto: 1 - da prática ao pensamento (colher dados pela experiência, para depois pensar a relação entre eles) e 2 - do pensamento para a prática (depois de ligados os fatos no pensamento, orientar melhor a prática).

Mao conclui, sem muitas explicações inclusive, que embora ambas as posturas sejam altamente problemáticas para a finalidade da Revolução, devendo ambas serem eliminadas do Partido Comunista e do Exército Vermelho, a que tem, em 1937, a potencialidade mais destrutiva é a Dogmática. Ela é, naquele momento, a mais maléfica.

Poderíamos pensar "com/contra" Mao para entender o que significaria a necessidade da política de Bartleby de que fala Zizek: em primeiro lugar aceitamos a premissa de Mao. Tanto a posição Dogmática quanto a posição Empírica são nocivas aos objetivos Revolucionários e ambas devem ser eliminadas das organizações que estão engajadas no projeto revolucionário. É o tema da relação entre Teoria e Prática em que não se pode Teorizar algo que não seja justamente a prática, e não se pode praticar algo que não seja justamente o que foi pensado e discutido, teorizado, sobre a prática. O Dogmatismo seria o Teorizar a teoria. Inócuo! O Empirismo Praticar a prática. Inócuo, pois a passagem para a orientação e melhoramento da própria prática se dá pelo pensamento.

Mas será que a especificidade da esquerda contemporânea não sugere que o pior, hoje, seja o Empirismo? De forma que ela é a mais maléfica (como frisou Mao: dentre as duas que devem ser igualmente eliminadas) em tempos de crise da esquerda, em que o projeto estratégico de tomada do poder, justamente a passagem de orientação da prática, não está claro e o capitalismo demanda ações expontaneístas e pretensamente "éticas" e "engajadas" para sua própria reprodução, uma espécie de generalização do McDia Feliz?

Nossa estratégia é o obsceno do nosso trabalho.


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*um bom exemplo disso tem sido as repetidas cenas de penetração dos filmes de Lars Von Trier que nada tem de pornográficos. Até hoje uma cena de penetração certamente "trairia" o enredo de um filme que não fosse pornográfico: se estivéssemos diante de um romance qualquer e na cena do clímax, em que o rapaz beija a moça, passássemos pelo ato sexual explícito, sem o famoso corte que leva para a cena seguinte dos amantes simplesmente fumando como se implicitamente tivessem feito sexo, certamente experimentáriamos o enredo do filme, por mais sério que fosse, como uma mera desculpa barata para a pornografia da cena. Em Die Idioten e O Anticristo de Lars Von Trier, o que vemos é justamente uma aproximação de perto da real thing sexual, até o ponto da penetração, sem que isso prejudique o enredo do filme.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O Militante é um Número.

Alain Badiou é filósofo e militante comunista francês e juntamente com Slavoj Zizek tem se empenhado na renovação teórica do marxismo "pós-pós-modernidade", trabalhando em inúmeras teses de alta abstração e refinamentos teóricos que, no entanto, não deixam de ter importância para a reflexão de nossas práticas militantes (como aliás, é o objetivo geral da obra de Badiou).

Gostaria de iniciar uma reflexão sobre a militância a partir de uma das mais interessantes empreitadas do filósofo: suas reflexões sobre matemática, mais especificamente, sobre a noção de Número.

Aqui, todo o pensamento de Badiou tem por objetivo pensar o que seria um número. Pergunta pertinente para a matemática por dois motivos principais: em primeiro lugar a conceitualização grega clássica de que o número seria a representação simbólica de uma multiplicidade composta de unidades não se sustenta mais seja porque o número zero não se encaixa no conceito (por exemplo), seja porque isso de certa forma dá lugar privilegiado à idéia de Unidade como a substância, o tijolo que compõe as multiplicidades (o que filosoficamente é problemático por uma série de motivos que não trataremos aqui).

Em segundo lugar, a indagação sobre o que é um número é pertinente na medida em que a matemática moderna se desenvolveu tanto que não pôde mais comportar um conceito unitário de número. Remetendo-nos à teoria dos conjuntos, por exemplo, verificamos que aquilo que caracteriza um número natural inteiro, não vale necessariamnete para a caracterização de um número irracional, e tampouco de um número complexo: os conjuntos lançaram a idéia de número na noção de "pertencimento" de forma que é muito difícil pensar numa noção de número que dê conta de todos os tipos de números existentes (de todos os conjuntos de números que nada ou pouco têm a ver um com o outro), jogando a idéia de número numa aparente anarquia conceitual.

Mas o projeto de Badiou é precisamente trazer uma resposta que dê conta de todos os tipos de números existentes e, mais ainda, dos números que ainda não descobrimos mas que podem ser "inventados" ou "descobertos" (aqui, tanto faz uma como outra palavra). É aqui que ele se utiliza da idéia lacaniana de matema, de uma letra que dá vida a uma idéia pré-discursiva, ainda não "contaminada por discurso". Ou seja, uma fórmula matemática que, por dizer "o óbvio", não é pega nas contradições ou especificidades de discurso nenhum, sendo compartilhada por todos os discursos. "X,@" é o matema do número. Donde X é o conjunto a que "presta satisfação" um número qualquer, e @ a especificidade, a singularidade de um elemento qualquer que pertence ao conjunto X, conjunto este que ele próprio sustenta como verdade.

O que o matema diz, portanto, é que qualquer número, independentemente de ser ele racional, irracional, complexo, real ou natural, traz em si mesmo duas coordenadas (qualquer número é composto de duas coordenadas, de dois "dados" básicos): a primeira é a de um grupo ou conjunto que orienta a característica comum de certos elementos numéricos. A segunda é a de pertença, a de um elemento singular específico que se destaca em meio àquele grupo de elementos com algo em comum. Portanto quando nos deparamos com o símbolo "3" ou "1,555..." vemos nesses símbolos duas coisas: em primeiro lugar que eles sustentam um conjunto numérico a que pertencem (no primeiro caso o conjunto dos naturais inteiros, no segundo caso o conjunto dos racionais), em segundo lugar podemos ler a idéia de que "de todos os números naturais que existem, trata-se aqui, especificamente do 3". Ou "de todos os números racionais que existem, trata-se aqui especificamente do 1,555...".

O mais interessante é: não se passa a mesma coisa com a figura do militante? É possível dar um "conceito de militante" se estamos, principalmente após o advento da forma pós-moderna de capitalismo, diante de uma infinidade de campos de ação militante, cada um com sua lógica interna específica, demandando ações e pensamentos específicos que, muitas vezes, tem pouco a ver uns com os outros? Diante disso como pensar O Militante (a idéia de militante, comum a todas as formas específicas de militância)? É claro que a resposta pós-moderna, sempre fácil, é que não! Não é possível pensar A Ação militante, uma vez que tudo está imerso numa explosão de peculiaridades, especificidades etc. É o famoso tema do "fim das meta-narrativas".

Mas seguindo a orientação de Badiou, podemos pensar o militante como um matema similiar ao do número. Todo militante traz em si próprio duas coordenadas, duas informações ou dados: em primeiro lugar a de um coletivo ou grupo de pessoas que partilham, em sua ação e pensamento, características comuns, em segundo lugar a da singularidade específica daquele militante diante dos outros "elementos militantes" que compartilham das características comuns orientadas pelo grupo ou conjunto. (Devemos acrescentar, a título de lembrete, que nada impede que o Militante pertença a mais de um grupo de militância, assim como nada impede que um número pertença a mais de um conjunto numérico).Em outras palavras, O Militante (assim como O Número) sustenta em si próprio a marca do grupo em que milita (podendo militar em vários grupos) ao mesmo tempo em que é um elemento diferenciado e singular (em sua criatividade e participação) no grupo em questão.


Isto pode eliminar dois equívocos possíveis sobre a militância: em primeiro lugar o do pertencimento exclusivo a um movimento ou partido, nos moldes de uma relação Senhor-Escravo, ou seja, o militante como aquele completamente submisso aos mandos e desmandos da lógica do Partido ou Movimento (quaisquer que sejam eles). Afinal a letra @ insere a necessidade da singularidade na participação, ou seja, daquele elemento criativo e único que destaca (e justifica) o pertencimento daquele militante específico no Grupo. Porém, o que esta idéia também elimina é o extremo oposto: ou seja, a noção expontaneísta de engajamento político que, por considerar que a verticalidade movimentista é totalitária, acaba se apoiando apenas na criatividade singular do militante, muitas vezes deixando de lado a participação no Partido ou Movimento, esquecendo que aquele militante singular, só é singular em relação a todos os outros que se identificam numa Unidade, Unidade esta que só o Grupo pode criar. É a letra X que, não atoa, vem antes da letra @. Pois a singularidade (@) só existe em relação a Unidade do grupo (X).

Logo, o Militante não pode deixar de se dividir nessas duas tarefas:
1 - a de entender sua participação e contribuição singular no Partido ou Movimento (friso: quaisquer que sejam eles) e agir conforme a esta compreensão, se destacando dos demais companheiros em sua tarefa específica. Aqui a ação militante é mais propriamente requerida, o arregaçar as mangas deve ser postulado aqui, o famoso "de cada um" socialista que permite que o militante se destaque na prática singular de sua militância.

2 - a de entender e sustentar o vínculo que constrói a unidade do grupo sob pena de perder a própria contribuição singular de sua militância: aqui são requeridas as discussões diretivas sobre a prática estratégica e tática do Grupo e as Votações que dão a palavra final na organização interna dos objetivos do Grupo ou da caracterização teórico-ideológica do Grupo. Afinal é aqui que se constrói a Unidade, o "comum a todos" em relação ao qual (e somente em relação ao qual) pode se destacar a contribuição singular do militante, o @ em relação a X.

Por isso proponho que o militante é "só" um número e, ao mesmo tempo, "acima de tudo" um Número.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Reflexão portuguesa sobre a atualidade de Marx no capitalismo pós-crise.

Este é um vídeo interessante, mostrando os debates que ocorrem em portugal, promovido pela CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses), a respeito da atualidade do pensamento marxista no capitalismo pós-crise.