segunda-feira, 15 de março de 2010

O Militante é um Número.

Alain Badiou é filósofo e militante comunista francês e juntamente com Slavoj Zizek tem se empenhado na renovação teórica do marxismo "pós-pós-modernidade", trabalhando em inúmeras teses de alta abstração e refinamentos teóricos que, no entanto, não deixam de ter importância para a reflexão de nossas práticas militantes (como aliás, é o objetivo geral da obra de Badiou).

Gostaria de iniciar uma reflexão sobre a militância a partir de uma das mais interessantes empreitadas do filósofo: suas reflexões sobre matemática, mais especificamente, sobre a noção de Número.

Aqui, todo o pensamento de Badiou tem por objetivo pensar o que seria um número. Pergunta pertinente para a matemática por dois motivos principais: em primeiro lugar a conceitualização grega clássica de que o número seria a representação simbólica de uma multiplicidade composta de unidades não se sustenta mais seja porque o número zero não se encaixa no conceito (por exemplo), seja porque isso de certa forma dá lugar privilegiado à idéia de Unidade como a substância, o tijolo que compõe as multiplicidades (o que filosoficamente é problemático por uma série de motivos que não trataremos aqui).

Em segundo lugar, a indagação sobre o que é um número é pertinente na medida em que a matemática moderna se desenvolveu tanto que não pôde mais comportar um conceito unitário de número. Remetendo-nos à teoria dos conjuntos, por exemplo, verificamos que aquilo que caracteriza um número natural inteiro, não vale necessariamnete para a caracterização de um número irracional, e tampouco de um número complexo: os conjuntos lançaram a idéia de número na noção de "pertencimento" de forma que é muito difícil pensar numa noção de número que dê conta de todos os tipos de números existentes (de todos os conjuntos de números que nada ou pouco têm a ver um com o outro), jogando a idéia de número numa aparente anarquia conceitual.

Mas o projeto de Badiou é precisamente trazer uma resposta que dê conta de todos os tipos de números existentes e, mais ainda, dos números que ainda não descobrimos mas que podem ser "inventados" ou "descobertos" (aqui, tanto faz uma como outra palavra). É aqui que ele se utiliza da idéia lacaniana de matema, de uma letra que dá vida a uma idéia pré-discursiva, ainda não "contaminada por discurso". Ou seja, uma fórmula matemática que, por dizer "o óbvio", não é pega nas contradições ou especificidades de discurso nenhum, sendo compartilhada por todos os discursos. "X,@" é o matema do número. Donde X é o conjunto a que "presta satisfação" um número qualquer, e @ a especificidade, a singularidade de um elemento qualquer que pertence ao conjunto X, conjunto este que ele próprio sustenta como verdade.

O que o matema diz, portanto, é que qualquer número, independentemente de ser ele racional, irracional, complexo, real ou natural, traz em si mesmo duas coordenadas (qualquer número é composto de duas coordenadas, de dois "dados" básicos): a primeira é a de um grupo ou conjunto que orienta a característica comum de certos elementos numéricos. A segunda é a de pertença, a de um elemento singular específico que se destaca em meio àquele grupo de elementos com algo em comum. Portanto quando nos deparamos com o símbolo "3" ou "1,555..." vemos nesses símbolos duas coisas: em primeiro lugar que eles sustentam um conjunto numérico a que pertencem (no primeiro caso o conjunto dos naturais inteiros, no segundo caso o conjunto dos racionais), em segundo lugar podemos ler a idéia de que "de todos os números naturais que existem, trata-se aqui, especificamente do 3". Ou "de todos os números racionais que existem, trata-se aqui especificamente do 1,555...".

O mais interessante é: não se passa a mesma coisa com a figura do militante? É possível dar um "conceito de militante" se estamos, principalmente após o advento da forma pós-moderna de capitalismo, diante de uma infinidade de campos de ação militante, cada um com sua lógica interna específica, demandando ações e pensamentos específicos que, muitas vezes, tem pouco a ver uns com os outros? Diante disso como pensar O Militante (a idéia de militante, comum a todas as formas específicas de militância)? É claro que a resposta pós-moderna, sempre fácil, é que não! Não é possível pensar A Ação militante, uma vez que tudo está imerso numa explosão de peculiaridades, especificidades etc. É o famoso tema do "fim das meta-narrativas".

Mas seguindo a orientação de Badiou, podemos pensar o militante como um matema similiar ao do número. Todo militante traz em si próprio duas coordenadas, duas informações ou dados: em primeiro lugar a de um coletivo ou grupo de pessoas que partilham, em sua ação e pensamento, características comuns, em segundo lugar a da singularidade específica daquele militante diante dos outros "elementos militantes" que compartilham das características comuns orientadas pelo grupo ou conjunto. (Devemos acrescentar, a título de lembrete, que nada impede que o Militante pertença a mais de um grupo de militância, assim como nada impede que um número pertença a mais de um conjunto numérico).Em outras palavras, O Militante (assim como O Número) sustenta em si próprio a marca do grupo em que milita (podendo militar em vários grupos) ao mesmo tempo em que é um elemento diferenciado e singular (em sua criatividade e participação) no grupo em questão.


Isto pode eliminar dois equívocos possíveis sobre a militância: em primeiro lugar o do pertencimento exclusivo a um movimento ou partido, nos moldes de uma relação Senhor-Escravo, ou seja, o militante como aquele completamente submisso aos mandos e desmandos da lógica do Partido ou Movimento (quaisquer que sejam eles). Afinal a letra @ insere a necessidade da singularidade na participação, ou seja, daquele elemento criativo e único que destaca (e justifica) o pertencimento daquele militante específico no Grupo. Porém, o que esta idéia também elimina é o extremo oposto: ou seja, a noção expontaneísta de engajamento político que, por considerar que a verticalidade movimentista é totalitária, acaba se apoiando apenas na criatividade singular do militante, muitas vezes deixando de lado a participação no Partido ou Movimento, esquecendo que aquele militante singular, só é singular em relação a todos os outros que se identificam numa Unidade, Unidade esta que só o Grupo pode criar. É a letra X que, não atoa, vem antes da letra @. Pois a singularidade (@) só existe em relação a Unidade do grupo (X).

Logo, o Militante não pode deixar de se dividir nessas duas tarefas:
1 - a de entender sua participação e contribuição singular no Partido ou Movimento (friso: quaisquer que sejam eles) e agir conforme a esta compreensão, se destacando dos demais companheiros em sua tarefa específica. Aqui a ação militante é mais propriamente requerida, o arregaçar as mangas deve ser postulado aqui, o famoso "de cada um" socialista que permite que o militante se destaque na prática singular de sua militância.

2 - a de entender e sustentar o vínculo que constrói a unidade do grupo sob pena de perder a própria contribuição singular de sua militância: aqui são requeridas as discussões diretivas sobre a prática estratégica e tática do Grupo e as Votações que dão a palavra final na organização interna dos objetivos do Grupo ou da caracterização teórico-ideológica do Grupo. Afinal é aqui que se constrói a Unidade, o "comum a todos" em relação ao qual (e somente em relação ao qual) pode se destacar a contribuição singular do militante, o @ em relação a X.

Por isso proponho que o militante é "só" um número e, ao mesmo tempo, "acima de tudo" um Número.

2 comentários:

Felipe disse...

Quanto tempo, doutor! Tira minhas dúvidas cá.

A definição de militante é não-conteudística – bastante formal. Não sei se consigo compreender no que ela se contrapõe a uma possível resposta pós-moderna. Ou, se entendi bem, a definição pós-moderna, que geralmente é o mais aberta possível a uma pluralidade desmedida, se opõe à resposta de Badiou porque não admitiria o compromisso mínimo com o conjunto que sempre existe apesar do espaço criativo dado ao elemento singular. Seria isso?

E se o elemento singular for reduzido à mera noção de função? Cada um tem sua função singular, mas função é sempre função de... num esquema orgânico resistente a contradições.

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

Acho que é não conteudística sim. Pelo menos no que vim pensando até agora... isso pelo fato de não querer restringir a militância num conteúdo específico... acho que o elemento "criatividade" é sempre determinante aqui.

Acho que se opõe à pós-modernidade por duas coisas alternativamente: a pós-modernidade ou ignora e nega a ação militante, uma vez que não existem meta-narrativas (aquela coisa toda) ou simplesmente transforma todos em militantes nessa multidão de coisas plurais que acontecem etc (aquela outra coisa toda!).

O que existem são duas atitudes: "militância? pra que? vc acredita que seja possível mudar o mundo?". ou então "militância? é claro! Todos somos militantes da nossa individualidade..."

A proposta seria não arredar pé de um movimento em bloco, de massas, com Unidade e tampouco do elemento singular e criativo "daquele militante específico", uma vez que realmente a pós-modernidade, de fato abriu uma série de novos campos de batalha nos movimentos sociais, nos sindicatos e até nos partidos. Por exemplo: feminismo, ecologia, movimento dos gays, etc. São campos que há pouco tempo não existiam como espaço de ação militante...

bem... quanto a questão do elemento singular... ele é uma função, acredito. Mas o problema é que ele é, ao mesmo tempo, elemento criativo. Não função no sentido de: "num determinado partido, por exemplo, fulado tem tal função, beltrano tal função e assim por diante".

Acho que a idéia é que todos tenham sim sua função. Mas esse lugar que ocupam pela função no elemento organico, no grupo, na Unidade, é a própria unidade em si. O elemento singular é aquele que permite a auto-orientação do militante, conforme seu empenho e criatividade (o "de cada um" socialista) que destaca sua singularidade @ como irredutível ao grupo, X.

acho que é isso...