terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O fascismo sustenta o Lulismo, ou o Lulismo sustenta o fascismo?

Todo fascismo é testemunho

de uma revolução fracassada.

- Walter Benjamin

Roland Corbisier disse a respeito da Revolução dos Cravos em Portugal na década de 70 que ‘[a revolução dos cravos] prova que é possível ser militar sem ser fascista’. Poderíamos afirmá-lo hoje também a respeito da Venezuela de Chavez. Mas e no Brasil de Lula e Dilma?

Após sua cerimônia de posse, a secretária de Direitos Humanos do governo Dilma, Maria do Rosário, reafirmou a necessidade da criação da Comissão da Verdade proposta pela mesma secretaria em projeto de lei de maio do ano passado, ainda sob o governo Lula. Segundo Maria do Rosário, a tal comissão teria por finalidade ‘resgatar a memória e a dignidade dos desaparecidos durante a ditadura’.

Logo após, Dilma fez um comentário que mais parece uma ressalva: ‘As forças armadas também fazem parte da consolidação da democracia’. E ressaltou que tinha certeza que as forças armadas também tinham interesse em estar juntas neste processo.

Mas horas depois foi a vez da cerimônia de posse do General José Elito Siqueira, ministro do ‘Gabinete de Segurança Institucional’ do governo Dilma. E parece que o General discorda de Dilma. Mas apenas parcialmente. É que para ele o ‘movimento de 64’ (este é o termo com que o General se refere ao golpe) deve ser tratado como ‘um dado histórico da nação, seja com prós e com contras [grifo nosso], mas como dado histórico. Os desaparecidos são história da nação que não temos de nos envergonhar ou nos vangloriar [grifo nosso]. Temos que estudá-lo como fato histórico’. É que se trata, para ele, de ‘olhar para frente’ e de ‘pensar nas melhorias do nosso país para as futuras gerações’.

E logo depois também o General Enzo Peri, logo após o discurso de cerimônia do Gen José Elito, reafirmou o discuro de olhar para frente, contradizendo Dilma no que se refere ao suposto ‘interesse’ das Forças Armadas em apurar as torturas do tal ‘movimento de 64’. E isto tudo na frente de 300 militares que estavam presentes na cerimônia.

A Institucionalidade do Gabinete de Segurança Institucional.

Bem, quais são as funções do ‘Gabinete de Segurança Institucional’? Entre elas estão a de ‘prevenção da ocorrência e articulação do gerenciamento de crises em caso de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional’ e a de ‘coordenação das atividades de inteligência federal e de segurança da informação’. (www.gsi.gov.br/sobre).

Ora, sob o ponto de vista estritamente ‘institucional’, portanto: ou esse papinho de apurar os crimes da ditadura é nada mais nada menos do que aquilo que Peter Sloterdijk chamou de ‘razão cínica’ como processo de legitimação discursiva própria da nossa era, ou seja, algo que não é pra ser levado realmente a sério e cuja eficácia reside precisamente nisto; ou, no caso de ser prova da ‘sinceridade e da sensibilidade feminina’ de Dilma Roussef, essa divergência entre os dois ministros pode levar a uma ‘instabilidade institucional’. Caso em que será chamado para dirimir a crise, ninguém menos que o General Siqueira, como lhe compete ‘institucionalmente’.

De outro lado, não há muito o que se preocupar porque, de qualquer forma, a função de controlar as atividades de inteligência e ‘zelar pela segurança da informação’ também é competência ‘institucional’ do General Siqueira. Que é abertamente contra a apuração e publicização dos atos criminosos conduzidos pelas forças armadas na redentora de 64.

De que é nome o termo ‘segurança institucional’?

Ou, dito de outra forma, que significa dizer, como disse Dilma, que ‘as forças armadas fazem parte da consolidação da democracia’? Pois aqui, me parece que ela e os generais gorilas concordam plenamente.

De que depende a ‘segurança institucional’ de uma democracia ocidental? Da lei (e das instituições democráticas que, em última análise são parte do regime constitucional e fundadas sob uma lei). Mas e a lei, depende de quê?

Kelsen diria, de uma grundnorm, de uma norma fundamental pressuposta que põe a validade da lei, que é em si a validade da lei como dádiva, como ‘graça’, para usar um termo teológico. É que a lei em Kelsen, como em Kant, é impessoal, é despersonalizada. Ela é um ‘enunciado sem sujeito’. Não é que Kelsen ou Kant desconsiderem o caráter eminentemente humano de todas as leis, sejam elas morais ou jurídicas. Mas aqui um argumento muito similar ao da ‘coisa-em-si’ é posto em andamento: embora o espírito esteja preso na esfera subjetiva, na forma de um ideal regulativo nós agimos ‘como se’ o conteúdo objetivo da lei estivesse lá e ‘como se’ ele fosse possível. Portanto o conteúdo objetivo da lei é uma ilusão, mas uma ilusão necessária.

Mas foi Lacan quem demonstrou a verdade desta impessoalidade da lei kantiana em seu Kant com Sade: onde o imperativo categórico (que aplicado ao ordenamento é a grundnorm) aparece como impessoal e, portanto, onde os citoyen burgueses abdicam de parte do seu gozo pessoal em nome de uma lei Universal ‘despersonalizada’, aparece, em seu lugar, a figura do Carrasco Sádico e do Outro. O gozo abdicado não é simplesmente perdido. Usando a metáfora energética freudiana, não pode, aqui, haver perdas. Mas este gozo ‘perdido’ aparece na forma de um gozo superegóico e perverso e o Carrasco Sádico é aquele sujeito perverso que age como instrumento do Gozo do Outro. E Lacan lança um desafio: encontrar no pensamento do marquês de Sade um único aforisma que contradiga o imperativo categórico de Kant. (Lacan lembra que, inclusive, para o sádico o sofrimento a ser imposto aos outros pode muito bem ser imposto a si próprio por outro. Portango ‘age de tal forma que sua ação possa ser válida para todos’).

Portanto a própria lei se baseia estruturalmente num excesso superegóico e, qualquer ordem social, se baseia numa violência. Violência que Benjamin chamaria de ‘objetiva’, ou seja, uma violência que não é imputável a um sujeito qualquer, mas que é inerente à ordem social, objetivamente. Em alguma medida, o Estado pode e sabe que pode fazer o que for preciso para manter a ordem em que se baseia e a ordem que defende.

Esta é a tese fundamental das primeiras teorias sobre o fascismo que, acertadamente, mostravam o fascismo como o ‘excesso superegóico’ do regime burguês. Pois o fascismo, na medida em que era também um regime do capitalismo, demonstrava até onde os setores mais reacionários do capital financeiro (o caso mais conhecido foi o da IBM, mas existem outros) estavam dispostos a ir para barrar qualquer tentativa de levante popular organizado que puzesse em cheque os privilégios da ordem burguesa.

Contrariamente às teorias arendtianas sobre totalitarismo que tentam isentar o capitalismo de qualquer culpa sobre o fascismo e, de quebra, imputá-la aos movimentos populares organizados e às organizações sindicais combativas, as teorias revolucionárias sobre o fascismo (de que fala Konder em seu Introdução ao Fascismo), demonstram que o fenômeno fascista emerge quando aquilo que, do poder burguês, é recalcado no discurso democrático retorna no discurso fascista na forma de terrorismo de estado e defesa do capital financeiro.

Segurança Institucional significa, aqui, aquilo que garante a exploração da classe burguesa sobre os trabalhadores sob condições sociais muito frágeis e complexas. E esta estabilidade cai por terra se não estiver baseada num excesso superegóico de violência fascista que, no momento certo, garante o terrorismo de estado contra as forças populares. Que o fascismo seja, como disse Benjamin, testemunho de uma revolução fracassada, quer dizer isto: que o fascismo é o fenômeno que emerge toda vez que é necessário à burguesia deixar de lado o mise-en- scène democrata e barbarizar contra forças populares que ameaçam o sistema do capital.

O recrudescimento da direita proto-fascista, racista, xenófoba e fundamentalista no Brasil, como assistimos nas disputas eleitorais entre Serra e Dilma, é decorrência desse compromisso tácito entre as forças democráticas do Partido Termidoriano e as forças fascistas do desenvolvimentismo golpista. E foi o PT quem favoreceu este recrudescimento.

Ademais, vale uma última reflexão, que o capitalismo seja o elo de união entre democracia e fascismo me parece evidente (como evidente é que as teorias do Totalitarismo tem por objetivo unicamente mascarar esse fato). Mas então, não seria muito esclarecedor o fato de Delfim Neto ser o economista entusiasta tanto do governo Médici (e Castelo Branco) quanto do governo Dilma?





sábado, 24 de julho de 2010

De que importa Alain Badiou? (Breve rascunho sobre a Verdade.)

Alain Badiou, filósofo francês contemporâneo vem se destacando na construção de uma filosofia que recupere o ideal emancipatório há algum tempo abandonado pelos filosofos - em especial os franceses - e que trazia por nome a palavra comunismo.

O projeto filosófico de Badiou, contrariamente às tendências filosóficas dos últimos 30 anos, de matriz francesa, a chamada "nova filosofia", se preocupa eminentemente com as condições de um pensamento filosófico livre (ou seja, não constrangido por nenhum limite externo a não ser os limites internos que sua própria lógica impõe sobre ele) que, por óbvio, deve caminhar lado a lado com um projeto político emancipatório que, em última instância, crie condições concretas de o pensamento ser, de fato, livre.

Aqui, no campo filosófico, Badiou enxerga muito lucidamente o que é o problema contemporâneo da filosofia: a reinvenção da Verdade, da idéia de verdade, descartada por esta mesma filosofia francesa como algo intrinseca (e talvez ontologicamente) totalitária. Mas sem uma noção de Verdade não é possível nem pensamento filosófico, nem projeto político emancipatório concreto (ou seja, organizado).

Badiou está com a Verdade.

Badiou parte portanto de uma noção bastante interessante. Reinventar a Verdade significa rediscutir sua validade e sua força. Uma Verdade não pode ser algo simplesmente Universal como que externa às particularidades (ou melhor, às singularidades) que a ela se subordinam. (esta é a verdade totalizante para qual aponta todo o fetichismo pós-moderno). Tampouco a Verdade pode ser algo estritamente singular e, portanto, identitária como nos aponta a filosofia (esta sim totalitária) do multiculturalismo e suas nuâncias comunitaristas e liberais.

Uma Verdade é sempre uma singularidade universal.

A Filosofia é a forma lógica de aparecimento de uma Verdade que surge, originariamente, sempre como um Evento singular que descarrila a lógica precedente do pensamento universal. Em outras palavras, a filosofia mapeia as regras universais do pensamento lógico, com base em Eventos singulares que colocaram em xeque a lógica racional precedente (ou o pensamento universal precedente). Estes eventos são sempre de 4 ordens (ou como diria Zizek, principal interlocutor de Badiou, eles são de "3 + 1" ordens): A ciência; a arte; a política e, finalmente, o amor.

Assim, a filosofia (e aqui Badiou é claramente hegeliano na medida em que aceita abertamente o fato de a filosofia ser a "capacidade racional do gênero humano") recolhe eventos descobertas, e invenções das artes, das ciências, da política e/ou do amor para mapear as regras universais do pensamento humano.

Mas porque Zizek faz a ressalva de que estas 4 ordens de eventos são, na verdade 3 + 1? Porque a forma como estes Eventos (Descobertas, invenções, criações etc) aparecem e se organizam internamente ao procedimento-verdade a que correspondem tem por matriz o Amor. Ou seja, destas 4 "formas" do evento, o Amor é a "forma" que atravessa todas as outras. Como?

O Amor nada mais é do que um encontro que arranca o sujeito da continuidade monótona do cotidiano criando um abismo na e para a Razão, para o continuismo lógico e confortável da rotina. Mas enquanto isto o Amor não é ainda "para si" (se me permitem cruzar duas filosofias). O Amor se "completa" quando nos mantemos fiéis a este encontro, ou seja, quando aceitamos plenamente o abismo que se abre diante de nós e, a partir daí, reconstruímos a lógica do mundo e ressignificamos o mundo, sem exceções, a partir deste encontro. Nisto consiste a mágica do Amor. O mundo, embora esteja lá como sempre esteve, nunca mais é o mesmo. E a fidelidade consiste em jamais trair esta máxima, em jamais tergiversar ou agir cinicamente contra este "algo a mais", este aroma diferente no ar que preenche o mundo.

Em síntese: a matriz lógica (e portanto racional do amor) é a de um encontro com o inominável que obriga a refundação da racionalidade reflexiva do agir no mundo em caráter de fidelidade. Nisto a ciência, a política e a arte agem segundo a mesma matriz. Uma hipótese científica que descarrila a lógica paradigmática (para usar um termo em moda) precedente só pode representar um avanço epistemológico se os cientistas agem por amor e por fidelidade à hipótese. Uma política militante organizada (a única política que existe, o resto não é política, mas polícia) também é o processo de fidelidade (e amor) a uma hipótese política que põe em xeque as regras do stablishment estatal. E a arte também é a sucessão de obras fiéis a(e cheias de amor por) uma hipótese artística em ruptura com a estética do status quo.

A Verdade é aquilo que se cria no processo em que esta fidelidade organiza e alinha as coisas do mundo, as positividades do mundo em que ela opera, de forma a validar e comprovar a hipótese. Tal como São Paulo, apóstolo e militante, saiu em busca da validação da hipótese da ressureição por amor ao Evento chamado Cristo. E é claro que este processo (como também nos aponta a matriz do Amor) é infinito. O que não quer dizer que processos de verdade não se esgotem, por forças reacionárias externas, por sujeitos deste processo que resolvem traí-lo, ou pela totalização deste processo na figura de um sujeito que se arvora no direito de constituí-lo a despeito dos demais sujeitos envolvidos.

Mas o crucial desta concepção (amorosa) da Verdade, como um singular Universal é a compreensão da lógica dos fracassos. Todo este raciocínio de Badiou é fundamental para entender que um fracasso de um projeto político, científico e artístico (+ amoroso) nunca é um fracasso tautológico ou universal. Ou seja, não se pode explicar o fracasso com base num "deu errado porque tinha que dar errado mesmo... estava óbvio desde o início"; tampouco com base em um "deu errado porque esta idéia de comunismo/o surrealismo/o teorema de Fermat/o amor é impossível".

Todo fracasso que diga respeito a um destes processos pode ser explicado a partir de um ponto singular em que, no processo, as coisas tomaram o caminho errado. E com isso, abre-se o debate sobre o fracasso dos SOREX (socialismos realmente existentes): a hipótese comunista deve ser abandonada? Se sim, como explicar que um Evento político em processo de verdade se distingue radicalmente de um evento científico, por exemplo? Quer dizer que o Teorema de Fermat, a qual a matemática deve grande parte de seus desenvolvimentos, e precisamente por causa dos sucessivos fracassos em comprová-lo (até que Wilies o fez há alguns anos), deveria ter sido abandonado há 3 séculos atrás?

Amemos a hipótese comunista. E sejamos os únicos capazes de amar e compreender a lógica do fracasso das formas concretas de sua existência histórica.

A Verdade voltou!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Uma resposta: em defesa de Georges Politzer, Plínio de Arruda Sampaio e do Psol.

Uma amiga me monstrou este link de um blog chamando o Psol de partido neo-stalinista com base na opção do partido em recomendar a leitura de um livro de Geoges Politzer chamado "Princípios elementares de Filosofia".: http://diariogauche.blogspot.com/2010/07/seria-o-psol-um-partido-neo-stalinista.html

Fiz uma resposta o mais cordial possível por achar que é um debate que traz uma série de formulações muito caras aos movimentos emancipatórios hoje.

Aqui vai:

A Crítica é falha pelo seguinte:

Em primeiro lugar a crítica desconsidera que quase todo o marxismo brasileiro foi stalinista. E isso por um motivo muito simples: a doutrina marxista que chegou ao brasil chegou pelas mãos do Partidão com orientação ideológica do marxismo oficial. São poucos os marxistas não-stalinistas no Brasil. Em segundo lugar que quer dizer quando se diz que um livro é stalinista? Que existe uma "essência" totalitária na teoria? O problema desse argumento é que ele cai numa espécie de "armadilha ontológica". O Stalinismo vulgarizou em grande parte, é verdade, o marxismo. Mas isto de forma nenhuma quer dizer que as contribuições stalinistas ou os alinhamentos teóricos stalinistas (e o mais famoso deles é o Lucácks de História e Consciência de Classe) sejam por si só ruins e deterministicamente totalitários enquanto objeto de estudos e reflexão.

Em segundo lugar: algumas coisas não foram ditas em relação ao Politzer. Em primeiro lugar, quando ele diz "esta obra que sequer foi escrita pelo Politzer" ele dá a entender que se trata de um fato contingente, que das obras de filosofia marxista do politzer, entre tantas, esta especificamente é uma compilação de anotações de alunos dos seus cursos de filosofia marxista. Mas o problema é que este compêndio de filosofia marxista foi uma "compilação de anotações" justamente porque foi resultado do trabalho de Georges Politzer na Universidade Proletária, projeto militante francês de intelectuais marxistas que ministravam cursos básicos de formação em filosofia para operários e abertos também ao público estudantil. E portanto a estrutura da obra é eminentemente oral (como diga-se de passagem são os seminários de Lacan) como todas as obras de Politzer resultantes de seus cursos de filosofia na Universidade Proletária. O que é claro faz concluir que muito provavelmente o que nosso querido crítico enxerga como a vulgarização da filosofia marxista, nada mais é do que o curso militante oferecido pelo franco-húngaro, juntamente com outros intelectuais marxistas, a trabalhadores de chão de fábrica da franca na década de 40 (até que de Gaule proibiu as atividades da referida Universidade) e omitido por ele na sua crítica.

Outro fato que, se bem não tem a ver com o caráter stalinista ou não da teoria marxista de Politzer, ainda é importante demais para ser omitido, é que Politzer foi um dos responsáveis pela promoção da psicanálise na frança e considerado pelo próprio Lacan (já que falei do método oral comum tanto aos Princípios Elementares de Filosofia quanto aos seminários lacanianos) um mestre através do qual o psicanalista francês teve seu primeiro contato com a obra freudiana e o saber psicanalítico. Este fato, ou antes a omissão dele, faz da crítica ao Politzer como um pensador vulgar ela própria uma crítica vulgar. A importância do pensamento de Politzer como intelectual militante para a história do pensamento francês no século XX vai um pouco além da mera panfletagem tosca e acrítica do regime stalinista.


Em terceiro lugar: não sei se o nosso crítico é ele próprio um petista envergonhado, coisa muito comum hoje em dia. Mas que fique claro, os desvios do PT não tem absolutamente nada a ver com formulações stalinistas do marxismo. Por isso não faz o menor sentido dizer que "Nem o PT, com todos os seus desvios de percurso, chapinhou na lama enganosa do marxismo vulgar do stalinismo." O PT não chapinhou na lama enganosa do marxismo vulgar do stalinismo, porque o PT há muito tempo não chapinha no marxismo, seja ele trotskista, stalinista, leninista, castrista, guevarista, maoísta etc. E isso simplesmente porque o PT não está construindo uma estratégia revolucionária rumo ao socialismo, mas gerindo a pós-política tão comumente propagada após a queda do muro.

Por último, quando ele pergunta "Será que o velho Plinião, candidato à presidência da República pelo partido neo-stalinista, sabe disso?", sinceramente eu não sei. Não tomei café da manhã com o Plínio. Mas arriscaria a resposta "sim, e daí?". O Plínio não é só um testa de ferro, um instrumento de manobra na mão de um partido controlador. Dizer isso é faltar com respeito à própria figura do Plínio cuja sabedoria teórica no campo do Marxismo vai da economia política marxista, da filosofia marxista ortodoxa, passando pela teologia da libertação até os filósofos marxistas contemporâneos (como Zizek, de quem o Plínio traduziu alguns textos; e Alain Badiou, a quem ele cita frequentemente nas entrevistas e debates). Plínio não é uma peça de museu com importãncia estratégica no tabuleiro político. Ele pensa a política do seu partido. Ele sabe.

E se o Plínio está num partido que recomenda a leitura de uma obra tão importante na história do pensamento e da militância socialista, é porque seu partido está construindo uma estratégia revolucionária rumo ao socialismo, projeto que o PT abandonou há muito tempo. E é por isso, e somente por isso, que o "nem o PT" recomenda a leitura de Geoges Politzer, de Lucácks ou dos textos sobre linguìstica do próprio Stalin.

De qualquer forma, só é possível evitar o stalinismo incorporando o fracasso das suas experiências mal sucedidas e a legitimação teórica-ideológica que as sustentaram. Este discurso de "evitar o mal maior virando as costas para o que pode ser o seu germe" é a mesma postura de Habermas/Bento XVI de evitar o mal maior da dissolução ética do homem virando as costas para a biogenética, fingindo que ela não existe. Postura teoricamente incontinente e politicamente conservadora.

domingo, 23 de maio de 2010

Porque a psicanálise é uma ciência materialista (e maoísta)?

Recentemente foi resgatada a crítica pretensamente materialista à epistemologia da psicanálise, comparando-a a homeopatia e questionando sua validade enquanto ciência, aproximando-a de um saber religioso. A obra é de Michel Onfray, seu último livro polêmico, Le Crépuscule d'une idole, l'affabulation freudienne. O argumento não é nada novo e parece realmente dominar um grande setor da esquerda. Mas da onde vem o preonceito metodológico à epistemologia e clínica psicanalítica? Sobretudo, porque frequentemente ele se aponta como uma "crítica materialista"?

Para responder a essas perguntas, em se tratando de um ataque à epistemologia da psicanálise, onde encontramos uma teoria do conhecimento na psicanálise? Ou, o que não é a mesma coisa, de onde a psicanálise retira sua teoria do conhecimento?

No dia 16 de agosto de 1893, falece em Paris o Dr. J.M. Charcot, Médico, Psiquiatra e Mestre de Sigmund Freud. Em ocasião do fato, Freud publica, em agosto do mesmo ano, um texto em homenagem ao trabalho clínico e teórico de Charcot, em especial pela sua influência para a fundação da psicanálise. Como indica Freud, Charcot teria sido o primeiro a se debruçar sobre uma série de quadros psiquiátricos ignorados pela psiquiatria e pela medicina teórica da época. Dentre eles, Charcot foi o primeiro a perceber que os sintomas histéricos, manifestos em grande parte no corpo (paralisias, tiques, etc), estavam ligados a encadeamentos lógicos de representações do paciente que remontavam a um fato ocorrido na vida do paciente. Fato este de que raramente se lembravam os histéricos e histéricas. De sorte que estes encadeamentos inconscientes revelavam uma recusa do eu do paciente em lidar com o fato ocorrido. O fato, permanecia assim, velado ao eu do paciente, porém ainda presente por meio destas representações "encarnadas" no sintoma corpóreo.

Mas se os resultados das pesquisas de Charcot (em grande parte por meio do método hipnótico) deslumbravam Freud, por óbvias razões, não menos o deslumbrava o método empregado por Charcot. Segundo Freud, o médico francês "acostumbraba considerar detenidamente uma y outra vez aquello que no lê era conocido y robustecer así, dia por dia, su impresión sobre ello hasta um momento em el qual llegaba de súbito a su compreensión. Ante su visión espiritual se ordenaba entonces el caos, fingindo por el constante retorno de los mismos sintomas, surgiendo los nuevos cuadros patológicos, caracterizados por el contínuo enlace de ciertos grupos de síndromes. Haciendo resaltar, por medio de cierta esquematización, los casos complejos y extremos, o sea los “tipos”, pasaba luego de éstos a la larga serie de los casos mitigados; esto es, de las formes frustrées, que, teniendo su punto inicial en uno cualquiera de los signos característicos del tipo, se extendían hasta lo indeterminado"*.

Em suma, o método charcotiano se resumia à tríade "observação clínica - conceitualização - inferência clínica". Ou seja, o método charcotiano, e sua teoria do conhecimento, se tratava de um processo que tinha por origem e finalidade a prática clínica, mediados (origem e fim) pela conceitualização teórica (enquadramento conceitual das síndromes) a que Charcot chegava por meio de uma certa "visão espiritual", segundo Freud.

A ênfase deste método na prática é explícita."Charcot no se fatigaba nunca de defender los derechos de la labor puramente clínica, consistente en ver y ordenar, contra la intervención de la medicina teórica". Quando um de seus discípulos, certa vez, lhe dirigiu a seguinte demanda "isso não pode ser, pois contraria a teoria de Young-Helmholtz", o mestre lhe respondeu "La théorie c'est bon, mais ça n'empeche d'exister", ou seja, a teoria é boa, mas isto não deixa de existir: sendo este isto aquilo que é capturável apenas pela vivência (e convivência) clínica, aquilo que não está mapeado em nenhuma teoria pré-estabelecida.

Em outras palavras, todo método charcotiano consistia na observação sistemática realizada pela prática clínica dos fenômenos frequentemente ignorados pela medicina teórica, e ignorados porque não podem ser explicados em concordância com os pressupostos básicos de tal ou qual teoria. Estes fenômenos são então sistematizados posteriormente por meio de um trabalho teórico de forma que se encontrem as relações mais íntimas entre eles de forma que acabem constituindo, uma porção deles, um só quadro sintomal, uma só "síndrome". O que então permite o retorno à prática para reordenar os fenômenos e ajudar na melhor compreensão das formes frustrées os sintomas que frustravam o enquadramento conceitual, que resistiam à racionalização (ou simbolização). Tudo se passa, para Charcot, como se houvesse duas dimensões irredutíveis entre si no conhecimento: a dimensão prática/clínica, e a dimensão teórica. Duas etapas do conhecimento que jamais se confundem, mas que não existem independentemente uma da outra.

Mas onde mais encontramos uma postura "antiteórica" similar e que, surpreendentemente recorre à mesma tríade prática-teoria-prática proposta por Charcot? E inclusive postulando um mesmo corte no saber, entre as dimensões prático-perceptiva e teórico-conceitual? A resposta deve ser imediata: em Sobre a Prática de Mao Tsé-Tung. Como demonstra a introdução de Mao ao texto de julho de 1937: "havia um certo número de camaradas em nosso Partido que eram dogmáticos e que por um longo período rejeitaram a experiência da revolução chinesa, negando assim a verdade de que o Marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação".**

Mao não só rejeita a postura dogmática ou teoricista de alguns camaradas de partido como também funda uma teoria materialista do conhecimento fundada na mesma noção de observação de fenômenos - teorização/conceitualização - inferência prática. É inclusive repetido o tema charcotiano de retorno à prática para a melhor compreensão das formes frustrées (literalmente: formas frustradas). Como diz Mao "se um homem deseja ser bem sucedido em seu trabalho, isto é, atingir resultados antecipados, ele deve fazer suas idéias corresponderem com as leis do mundo externo objetivo; se elas não correspondem, ele fracassa em sua prática. Depois de fracassar, ele aprende suas lições, corrige suas idéias para fazê-las corresponderem às leis do mundo externo, e pode assim transformar fracasso em sucesso; é isto o que quer dizer 'o fracasso é a mãe do sucesso'".

Mas alguém poderia objetar: que Mao e Charcot estejam de acordo em construir uma teoria do conhecimento baseada na tríade prática-teoria-prática em que o fracasso prático se põe como um desafio teórico que tem como finalidade melhorar a prática, transformando frustração em sucesso, dando atenção justamente aos fenômenos práticos ignorados pelo saber posto, tudo bem. Mas a tal "visão espiritual" de Charcot não o diferencia radicalmente do método eminentemente materialista de Mao? Não é verdade que Charcot seria extremamente idealista ao postular que a mudança qualitativa do saber teórico ocorre como que por passe de mágica, com o surgimento expontâneo de uma visão?

É aqui que a coincidência se torna ainda mais surpreendente. É que para sustentar tal estrutura triádica do conhecimento, Mao, como Charcot, distingue duas dimensões do conhecimento humano: a dimensão perceptiva e a dimensão cognitiva. Segundo Mao a percepção só consegue captar os fenômenos no caos, na relação exterior que as coisas guardam entre si, ou seja, relação não-sistemática entre as coisas. Somente o conhecimento cognitivo, que diz respeito à conceitualização e teorização das percepções sensoriais práticas, pode capturar (por mais paradoxal que pareça) a relação interna entre as coisas, aquela que pode sistematizar, enquadrar e conceitualizar os fenômenos. Citando o próprio Lenin, Mao afirma "todas as abstrações científicas refletem a natureza de forma mais profunda, verdadeira e completamente". Mas como exatamente, para Mao, o conhecimento avança do aspecto perceptivo para o cognitivo, o único capaz de capturar a "essência" do mundo material exterior e objetivo?

Segundo Mao: "Conforme a prática social continua, as coisas que fazem emergir as percepções sensoriais e as impressões do homem, no curso de sua prática são repetidas muitas vezes" - como nas observações clínicas de Charcot - "então uma mudança súbita ocorre no cérebro, no processo de cognição, e conceitos são formados [...] una as sobrancelhas e um estratagema virá a mente".

Mas que quer dizer este desparate? Seria Mao um idealista enrustido? Na verdade o que significam a "visão espiritual" de Charcot e o "estratagema" de Mao se referem à mesma noção da Intuição na dialética hegelo-marxista: uma decisão em ato que funda uma novidade e que Alain Badiou, filósofo maoísta francês, identifica como sendo o próprio cerne do pensamento ontológico: uma decisão que rouba o lugar do indecidível, do indecifrável pelo saber posto, o saber do stablishment. A esta decisão se dá o nome de axioma: uma sentença em ruptura com a lógica do mundo existente e que abre caminho para um processo-verdade que comprova retroativamente a validade da sentença a partir da fidelidade em ato (prática) a ela.

Tal como o poema que funda e funde um novo mundo de relações entre coisas, em oposição à lógica da prosa, eminentemente dianóica (= organização e encadeamento lógico de argumentos), o axioma (visão espiritual, estratagema, ou qualquer outro nome) funda e funde relações externas e caóticas entre as coisas que o saber "em prosa" ou dianóico tende a ignorar. Em se tratando de uma lacuna radical entre conhecimento perceptivo (prática) e conhecimento cognitivo (teórico) a única possibilidade de "avançar" nesta lacuna, é a fundação de um axioma, "por conta e risco" do sujeito que o permite organizar o caos do mundo objetivo.

Estamos tratando aqui de um argumento contrário à glosa dominante da filosofia da linguagem: esta decisão axiomática, que Badiou define como sendo o cerne do pensamento ontológico, precede a lógica. E não o contrário. Portanto, é a decisão sobre as leis da natureza (partindo, é claro da observação prática), que funda as leis da natureza. O que explica o paradoxo de Lenin em afirmar que somente o conhecimento teórico consegue compreender profunda, verdadeira e completamente o mundo objetivo.

Mas o que há de materialista nisto? Como nos diz Zizek, o materialismo é a única resposta possível para fenômenos "imateriais". Isto porque é próprio ao materialismo dialético considerar a irredutibilidade entre a razão humana, e as leis da natureza, uma lacuna tão radical que exige um "salto de fé" para que haja alguma avanço na compreensão do mundo objetivo. A postura idealista, é precisamente aquela que "coisifica" ou reifica tais fenômenos imateriais na forma de entes transcendentais, amarrando uma lógica dianóica de mundo que só poderia existir caso o mundo objetivo tivesse sido criado por um ser virtuoso e plenamente consciente.

É bom lembrar, entretanto: que"a religião seja o ópio do povo", não quer dizer que não haja um lado teológico no materialismo. Que leva Benjamin a afirmar que a teologia é a mão que anima o boneco do materialismo histórico. (E que leva Plínio A. Sampaio, candidato do PSOL para presidência da república a firmar seu "marxismo com sotaque cristão"). É deste salto de fé que se trata. Desta produção de axiomas que abre o caminho para a verdade e que une profundamente marxismo e psicanálise: a fé na infinitude do homem. Pois o homem é infinito porque é capaz de produzir axiomas.
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*Freud, Charcot. Em Obras Completas. Vol.1.
**Mao, On Practice. Disponível em www.marxists.org