quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Uma breve reflexão sobre o Direito e a Crítica ao Direito

Um grande amigo porto-alegrense (e gremista!) por quem tenho muito apreço, publicou em seu blog Tunel no Fim da Luz um artigo chamado "A Arrogância da Crítica ao Direito" em que, como bom crítico que é, defende a crítica embora se posicione abertamente pela leitura responsável da dogmática jurídica como viabilizadora de conquistas democráticas sem que se lhe torça o nariz a pretexto de uma pretensa postura crítica.

Gostaria, amistosamente é claro, de levantar a bandeira contrária.

Em O Sujeito Lacaniano Bruce Fink explica sucintamente a “entrada” do indivíduo na ordem simbólica, na linguagem, pelas operações da “alienação” e da “separação” (categorias cruciais para o pensamento lacaniano). Com a devida licença gostaria de resumir ainda mais (assumindo toda a responsabilidade por isso) tal processo.

A alienação, basicamente, consiste na maneira como o indivíduo se confronta com o fato de que ele e o Outro materno (Fink utiliza-se da expressão “mOther”) não são um só corpo, de que há uma secção entre eles. A criança percebe que seus desejos (e vale lembrar que é temerária a expressão ‘desejo’ nesse momento) não podem ser imediatamente satisfeitos, uma vez que a mãe possui outros desejos diversos da criança. É o primeiro encontro com o desejo do Outro. A reação da criança portanto é tentar atrair o desejo da mãe, obrigada assim a falar para que suas necessidades sejam satisfeitas. E aqui o indivíduo se torna sujeito, pois nesta entrada no mundo da linguagem, percebe que há um lugar previamente definido para ela e que não pode ser, não pode existir fora dele.

A separação, posteriormente, é o processo pelo qual, sabendo desse desejo, dessa falta do Outro, o sujeito da linguagem percebe que não pode satisfazê-lo. Sobra neste processo a causa do desejo ou o chamado “objeto pequeno a”, que é a causa do desejo do próprio sujeito, que também se percebe um sujeito a quem “falta algo”. Esta causa do desejo é “real” no sentido lacaniano do termo, ou seja não é simbolizável, não pode ser expressa em palavras, não é identificável como “elemento do Outro” (pois estes são só os significantes).

A questão é que este objeto causa do desejo é traumático. De forma que o sujeito se vê obrigado a “construir uma realidade” em volta dele e precisamente para evitar o encontro com ele. Ele precisa, portanto, organizar e estruturar a realidade em torno do seu desejo. Esta moldura em torno do desejo é o que Lacan chama de “fantasia” e o que o leva a afirmar que a realidade tem a estrutura de uma ficção. Uma ficção que determina o que é possível e o que é impossível para o sujeito, o que é “realidade” e o que é “ilusão”.

Pois bem, Slavoj Žižek em O Espectro da Ideologia argumenta que é indiscutivel a existência de coordenadas ideológicas para a operacionalidade da política em tempos de "pós-política" e defende a imperiosa necessidade de uma crítica à ideologia e de uma reinvenção da utopia para a superação dos problemas estruturais próprios do nosso contexto histórico.
O que o filósofo demonstra magistralmente é que a ideologia tem a mesma estrutura desta fantasia lacaniana, ou seja, é um discurso, uma linguagem, construída em torno do trauma dos indivíduos interpelados, para lhes dar um senso de realidade, para dizer-lhes o que é possível e o que é impossível segundo suas coordenadas e, conseqüentemente, operacionalizar sua própria atuação em seu lugar de poder.

Neste mesmo artigo, o pensador esloveno afirma categoricamente estar do lado de Althusser e contra Foucault no que diz respeito à forma como o poder se exerce. Não como uma complexa rede de poderes microfísicos (complexidade esta denunciada como insatisfatória por Žižek), mas como um discurso previamente estruturado e que precisa chegar aos lugares centrais de poder para obter o mínimo de eficácia sobre os indivíduos a ele submetidos, pelo processo de construção da realidade operado pela Ordem Simbólica.

Não custa lembrar que Althusser em seu clássico Aparelhos Ideológicos de Estado faz referência expressa à psicanálise freudiana (embora não se utilize de Lacan) para explicar como a Ideologia se exerce pela interpelação discursiva de indivíduos e como ela se baseia na “evidência de evidência” ou seja, de como ela constrói por seus próprios pressupostos, o que seja evidente (atemporal, apolítico, verdade eterna e incontestável, etc.) e o que seja impossível. E, isto não é segredo, Althusser aponta o Direito como um dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE’s).

Žižek, em Looking Awry: an introduction to Lacan through popular culture demonstra como a Democracia liberal é a forma discursiva, a ordem simbólica do capitalismo, interpelando indivíduos e organizando suas fantasias em torno do seu objeto a, da mesma forma como, os já enfraquecidos “Estados-Nação”, o faziam com o culto a mitos nacionais. Se hoje os Estados-Nação prestam um papel menos relevante para o cenário cultural contemporâneo, é o multiculturalismo tolerante e a era da chamada “pós-política” ou o fim da história como impossibilidade de transformação política radical, que cumprem o papel de organizar nossas fantasias, ou seja, que cumprem o papel da Ideologia. Indo ainda mais adiante, Žižek chega mesmo a afirmar que a teoria da sociedade do risco é que cumpre o papel primordial de agência ideológica hoje (O Elogio da Intolerância).

O que nós pensamos como politicamente possível ou impossível é determinado por uma fantasia estruturante que é a própria ideologia. Um dos exemplos mais utilizados pelo filósofo de Liublijana para ilustrar esta idéia é a maneira como encaramos a ecologia. Para ele, existe aí uma fantasia estruturante que precisa ser desfeita se pretendemos sinceramente encarar o problema “real” da ecologia, afinal hoje parece mais fácil imaginar o fim de toda a vida na terra do que uma mudança muito mais modesta no sistema de produção capitalista cuja dinâmica foi responsável pela própria relação exploratória do homem com a natureza. É por isso que o pensador insiste numa distinção de Etienne Balibar entre política e polícia. Polícia seria todo o ato de um poder já estabilizado para manter a própria estrutura de poder, a própria divisão da sociedade conforme a funcionalidade deste poder. Política, por outro lado, seria um Evento que mudaria as coordenadas já estabelecidas, um ato verdadeiramente impossível. Por isso a insistência de Žižek em “Arriscar o Impossível” (nome do seu livro de entrevistas realizadas por Glyn Daily).

Este evento seria o que nosso filósofo chama de “suspensão política da ética” ou seja, um acontecimento que, justamente por contestar fantasia estruturante existente, não pode ser ético nem antiético, mas apenas Político, no verdadeiro sentido da palavra, uma vez que a ética, aqui, também é um dos elementos da ideologia. E neste sentido, por diversas vezes, esta ética específica (pois Žižek, assim como Badiou postulam uma outra Ética, com ‘E’ maiúsculo) é confundida com o Direito, com as normas vigentes do ordenamento jurídico. E é Safatle quem, no posfácio de Bem-vindo ao Deserto do Real de Žižek, afirma que a suspensão do ordenamento jurídico é a única garantia de que a história não se reduza a um tempo morto e sem acontecimentos.

Desta forma a crítica ao Direito deve sim ser intolerante e talvez arrogante! Por óbvio estou a par das posições de Zaffaroni, como meu amigo Mayora apontou. E por certo que como crítico que sou (e devo dizer: socialista!) não acredito que o melhor seja deixar a operacionalização do direito e mesmo as discussões teóricas dogmáticas nas mãos de conservadores (e aqui reconheço a importância de um trabalho de contenção de dentro do Direito). Mas esta operacionalização e suas reflexões teóricas devem ter plena consciência do limite rígido que o Direito impõe a todo e qualquer ato político verdadeiramente libertário, inscrevendo os atos dos juristas em uma ambivalência inarredável.

7 comentários:

Juriká disse...

Cara, curti muito tuas considerações!
Forte Abraço!

disse...

MUITO INTERESSANTE

Unknown disse...

Grande Crisantho. Bela análise. Concordo plenamente contigo, a partir da relativização da crítica que fizestes no último parágrafo. Acho que o direito deve ser explodido, criticado sem piedade, a partir de todos os lugares teóricos possíveis. Só que, na lógica do e e, ao invés do ou ou, uma outra tarefa da crítica, e da crítica criminológica, é produzir uma dogmática critica, apta a conter a violência pública. Acho, apenas, que não dá para abandonar a trincheira. Em termos futebolísticos, significa dizer que, lateral que apoia demais, leva bola nas costas. Que bom que ainda existem pesquisadores, como nosso amigo Ala la or, que ainda tem saco para refinar o conceito de "erro", por exemplo, pois - pasmem - pessoas tem seu sofrimento amenizado a partir dessas pequenas rupturas. Grande abraço, comentário escrito diretamente do centro de Porto Alegre.

G.D. disse...

E de-lhe Crisantho.

Vou te dizer o que tenho dito a todos: concordo com TODAS as criticas que TODOS fazem.

Mas acho que usar a Psicanalise e autores como Zizek (ainda que pertinentes DEMAIS para 'assombrar' o direito), nao resolve o problema fatico (quase que digo FISICO) do funcionamento das nossas instituicoes.

CRENTE que sou, digo: Ferrajoli e outros utopistas pelo menos tem ALGUMA, voz no "mundo juridico".

De nada, ou pouco, adiantam para "O SISTEMA" a destrutividade epistemologica do FRAQUINHO discurso do direito. Ela tem que vir acompanhada, ou mesmo sub-inserida nos discursos, por hora, "possiveis".

Viva: mais um BLOG afu!

(Gabriel)

Unknown disse...

O amigo Chrysantho possui um talento impressionante. Quando a critica parece ter batido no limite, diagnostica: o problema e que ela nao pode passar desse limite. Afinal, esse transbordar as barreiras exigiria muito mais, e isso a critica no interior do Direito nao pode nos dar. E sinal de maturidade criticar a critica, mas ainda penso que o passo seguinte - pasmem, como ja afirmou o amigo Mayora - e voltar de onde se saiu (de dentro do Direito, portanto). Mas agora com os limites em mente. Uma coisa e verdade, e nisso estou com voce: os limites sempre podem ser estabelecidos mais longe, e mais perto da democracia real. Como diz um autor que me agrada muito: 'Nunca diga que essa e a ultima casa da rua. Sempre se pode construir mais uma'.

Um grande abraco meu amigo,
Alaor

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

Falou e disse mestre "Al Hussein A'or"!

Acho que no fundo a minha posição e a do Mayora não devem divergir muito, no sentido de ambos reconhecermos o domínio dos espaços de saber e de atuação jurídica pelos críticos, pelos que pensam o Direito como limite da liberdade de sujeitos concretos.


Talvez a única coisa que eu deva pontuar a partir de minhas posições é que isso não deve ser uma postura utópica no sentido Fukuyamista da coisa. Nada de refundar o mundo através de uma teoria jurídica (as vezes me parece que é isso que o Ferrajolli tenta fazer... E o Nilo já chegou a se posicionar contra o Jus-filósofo italiano neste sentido).

Refundemos o mundo implodindo o Direito, para fazer nascer outra coisa...

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

Caríssimo Gabriel!!!! (já que estou falando de psicanálise será que faço algum trocadilho com o "Divã"? Acho que não...! hehehe)

Mas a questão é que existe aí uma certa noção perigosa de tempo mesmo... enquanto operamos esse direito a partir das críticas jurídicas estamos nos afundando na própria consolidação da ideologia... Ou seja, meu trabalho de contenção pode ser legítimo, mas enquanto eu o inscrever dentro da própria linguagem e sistema jurídicos a crítica se torna legitimação do sofrimento também.

Neste sentido é que eu acho que a consciência do jurista da necessidade de destruir o Direito me parece necessária se, é claro, estamos preocupados com a superação da Democracia liberal e do capitalismo global.