quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Ninguém entendeu um Mod. Parte I: o excesso da modernidade

Foi Žižek quem afirmou que as figuras de Martin Luther King e dos episódios de maio de 68 foram cooptadas pela ideologia do liberalismo multiculturalista contemporâneo.

Para ele, Martin Luther King não teve um simples sonho de tolerância racial, mas um sólido projeto político de esquerda, utópico, que envolvia uma crítica político-econômica do capitalismo e da democracia liberal.

Assim como os episódios de maio de 68 não representaram uma simples revolução em nome do slogan "sexo, drogas e rock and roll", ou melhor, o próprio slogan continha nas entrelinhas um projeto político emancipatório crítico, de esquerda.

As imagens equivocadas destas figuras são produto de uma (des)apreensão, no sentido žižekiano do termo, dos fenômenos reais pela fantasia estruturante da ideologia multiculturalista e arrisco dizer que o mesmo se passa com a cena Mod.

Além de uma simples tribo urbana com gostos para roupas e músicas compartilhados por seus membros, existe uma mensagem política que precisa ser apreendida. Não creio que o termo Mod se refira à expressão modern rockers, mas, num sentido muito mais radical, penso estar ele relacionado ao termo modernists e aqui, os vínculos com a própria modernidade podem servir de rica matiére a pensére.

Žižek aponta, apoiado pela psicanálise, nos filmes de Hitchkock uma interessante transformação: a maneira como, nos anos 60, seus filmes deixam de lado a figura simbólica do pai e passam a se focar no superego materno. Para o filósofo esta transformação é crucial para a compreensão da crise da modernidade uma vez que ela se pauta na desintegração das famílias tradicionais burguesas bem como do Estado-Nação. O desaparecimento da figura paterna no espaço doméstico e a desintegração da figura paterna no espaço público.

Isto quer dizer que os sujeitos que surgem neste contexto têm grande dificuldade em lidar com mandados simbólicos, significantes mestres em seu não-senso. Não custa lembrar que Žižek aponta esta como a característica principal do sujeito "pós-moderno", que constantemente é chamado, desde criança, a se politizar no espaço doméstico e a se despolitizar, ou se infantilizar, no espaço público. Crianças têm a oportunidade de participar das decisões familiares, mas adultos não podem participar das decisões políticas cruciais aceitando cinicamente a democracia liberal como "verdade", ainda que saibam que ela não funciona.

Pois bem, minha hipótese é que este panorama está umbilicalmente ligado ao surgimento da cena (ou movimento?) Mod: os órfãos da guerra que não mais se identificam com sua nacionalidade, mas com o grupo de jovens que compartilham dos mesmos gostos e hábitos.

Quando o Estado-Nação, que como Žižek aponta, organiza a fantasia em torno dos nossos desejos pessoais por meio dos mitos nacionais, e portanto cria os nossos hábitos e gostos nacionais, se desintegra, rivalidades, violências e intolerâncias não se dão mais entre diferentes nacionalidades, mas entre diferentes grupos artificialmente formados. Não é o caso do fatídico episódio de 64 em que Mods e Rockers se confrontaram até a morte na praia de Brighton?

A estética e o comportamento Mod também tem íntima relação com a modernidade: uma aparência burguesa civilizada (e levemente subvertida, é verdade) conjugada com um comportamento agressivo e transgressor. Não é esta precisamente a cara da Modernidade? Uma empreitada aparentemente racionalizadora e civilizadora que esconde uma dinâmica violentíssima de subversão dos costumes tradicionais de todas as localidades ao redor do globo?

Parece, portanto, que a desintegração da figura paterna permitiu que este excesso constitutivo da modernidade viesse à tona personificado na cena Mod. E talvez esta dimensão deva ser resgatada para nos questionarmos o significado político desta aparição e inclusive da cultura que se forma nas duas últimas décadas na cidade em que vivo, Curitiba. Se é bem verdade que, ao menos nas músicas, houve pouca referência da cena Mod a posturas políticas abertamente de esquerda, a arte produzida foi extremamente transgressora, violenta e com a mesma pretensão universalizante. Não seria a hora de discutir o potencial universalizante desta cultura e porque e para que ela ressurge precisamente em São Paulo da década de oitenta e no sul do Brasil em meados da década de noventa?

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Uma breve reflexão sobre o Direito e a Crítica ao Direito

Um grande amigo porto-alegrense (e gremista!) por quem tenho muito apreço, publicou em seu blog Tunel no Fim da Luz um artigo chamado "A Arrogância da Crítica ao Direito" em que, como bom crítico que é, defende a crítica embora se posicione abertamente pela leitura responsável da dogmática jurídica como viabilizadora de conquistas democráticas sem que se lhe torça o nariz a pretexto de uma pretensa postura crítica.

Gostaria, amistosamente é claro, de levantar a bandeira contrária.

Em O Sujeito Lacaniano Bruce Fink explica sucintamente a “entrada” do indivíduo na ordem simbólica, na linguagem, pelas operações da “alienação” e da “separação” (categorias cruciais para o pensamento lacaniano). Com a devida licença gostaria de resumir ainda mais (assumindo toda a responsabilidade por isso) tal processo.

A alienação, basicamente, consiste na maneira como o indivíduo se confronta com o fato de que ele e o Outro materno (Fink utiliza-se da expressão “mOther”) não são um só corpo, de que há uma secção entre eles. A criança percebe que seus desejos (e vale lembrar que é temerária a expressão ‘desejo’ nesse momento) não podem ser imediatamente satisfeitos, uma vez que a mãe possui outros desejos diversos da criança. É o primeiro encontro com o desejo do Outro. A reação da criança portanto é tentar atrair o desejo da mãe, obrigada assim a falar para que suas necessidades sejam satisfeitas. E aqui o indivíduo se torna sujeito, pois nesta entrada no mundo da linguagem, percebe que há um lugar previamente definido para ela e que não pode ser, não pode existir fora dele.

A separação, posteriormente, é o processo pelo qual, sabendo desse desejo, dessa falta do Outro, o sujeito da linguagem percebe que não pode satisfazê-lo. Sobra neste processo a causa do desejo ou o chamado “objeto pequeno a”, que é a causa do desejo do próprio sujeito, que também se percebe um sujeito a quem “falta algo”. Esta causa do desejo é “real” no sentido lacaniano do termo, ou seja não é simbolizável, não pode ser expressa em palavras, não é identificável como “elemento do Outro” (pois estes são só os significantes).

A questão é que este objeto causa do desejo é traumático. De forma que o sujeito se vê obrigado a “construir uma realidade” em volta dele e precisamente para evitar o encontro com ele. Ele precisa, portanto, organizar e estruturar a realidade em torno do seu desejo. Esta moldura em torno do desejo é o que Lacan chama de “fantasia” e o que o leva a afirmar que a realidade tem a estrutura de uma ficção. Uma ficção que determina o que é possível e o que é impossível para o sujeito, o que é “realidade” e o que é “ilusão”.

Pois bem, Slavoj Žižek em O Espectro da Ideologia argumenta que é indiscutivel a existência de coordenadas ideológicas para a operacionalidade da política em tempos de "pós-política" e defende a imperiosa necessidade de uma crítica à ideologia e de uma reinvenção da utopia para a superação dos problemas estruturais próprios do nosso contexto histórico.
O que o filósofo demonstra magistralmente é que a ideologia tem a mesma estrutura desta fantasia lacaniana, ou seja, é um discurso, uma linguagem, construída em torno do trauma dos indivíduos interpelados, para lhes dar um senso de realidade, para dizer-lhes o que é possível e o que é impossível segundo suas coordenadas e, conseqüentemente, operacionalizar sua própria atuação em seu lugar de poder.

Neste mesmo artigo, o pensador esloveno afirma categoricamente estar do lado de Althusser e contra Foucault no que diz respeito à forma como o poder se exerce. Não como uma complexa rede de poderes microfísicos (complexidade esta denunciada como insatisfatória por Žižek), mas como um discurso previamente estruturado e que precisa chegar aos lugares centrais de poder para obter o mínimo de eficácia sobre os indivíduos a ele submetidos, pelo processo de construção da realidade operado pela Ordem Simbólica.

Não custa lembrar que Althusser em seu clássico Aparelhos Ideológicos de Estado faz referência expressa à psicanálise freudiana (embora não se utilize de Lacan) para explicar como a Ideologia se exerce pela interpelação discursiva de indivíduos e como ela se baseia na “evidência de evidência” ou seja, de como ela constrói por seus próprios pressupostos, o que seja evidente (atemporal, apolítico, verdade eterna e incontestável, etc.) e o que seja impossível. E, isto não é segredo, Althusser aponta o Direito como um dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE’s).

Žižek, em Looking Awry: an introduction to Lacan through popular culture demonstra como a Democracia liberal é a forma discursiva, a ordem simbólica do capitalismo, interpelando indivíduos e organizando suas fantasias em torno do seu objeto a, da mesma forma como, os já enfraquecidos “Estados-Nação”, o faziam com o culto a mitos nacionais. Se hoje os Estados-Nação prestam um papel menos relevante para o cenário cultural contemporâneo, é o multiculturalismo tolerante e a era da chamada “pós-política” ou o fim da história como impossibilidade de transformação política radical, que cumprem o papel de organizar nossas fantasias, ou seja, que cumprem o papel da Ideologia. Indo ainda mais adiante, Žižek chega mesmo a afirmar que a teoria da sociedade do risco é que cumpre o papel primordial de agência ideológica hoje (O Elogio da Intolerância).

O que nós pensamos como politicamente possível ou impossível é determinado por uma fantasia estruturante que é a própria ideologia. Um dos exemplos mais utilizados pelo filósofo de Liublijana para ilustrar esta idéia é a maneira como encaramos a ecologia. Para ele, existe aí uma fantasia estruturante que precisa ser desfeita se pretendemos sinceramente encarar o problema “real” da ecologia, afinal hoje parece mais fácil imaginar o fim de toda a vida na terra do que uma mudança muito mais modesta no sistema de produção capitalista cuja dinâmica foi responsável pela própria relação exploratória do homem com a natureza. É por isso que o pensador insiste numa distinção de Etienne Balibar entre política e polícia. Polícia seria todo o ato de um poder já estabilizado para manter a própria estrutura de poder, a própria divisão da sociedade conforme a funcionalidade deste poder. Política, por outro lado, seria um Evento que mudaria as coordenadas já estabelecidas, um ato verdadeiramente impossível. Por isso a insistência de Žižek em “Arriscar o Impossível” (nome do seu livro de entrevistas realizadas por Glyn Daily).

Este evento seria o que nosso filósofo chama de “suspensão política da ética” ou seja, um acontecimento que, justamente por contestar fantasia estruturante existente, não pode ser ético nem antiético, mas apenas Político, no verdadeiro sentido da palavra, uma vez que a ética, aqui, também é um dos elementos da ideologia. E neste sentido, por diversas vezes, esta ética específica (pois Žižek, assim como Badiou postulam uma outra Ética, com ‘E’ maiúsculo) é confundida com o Direito, com as normas vigentes do ordenamento jurídico. E é Safatle quem, no posfácio de Bem-vindo ao Deserto do Real de Žižek, afirma que a suspensão do ordenamento jurídico é a única garantia de que a história não se reduza a um tempo morto e sem acontecimentos.

Desta forma a crítica ao Direito deve sim ser intolerante e talvez arrogante! Por óbvio estou a par das posições de Zaffaroni, como meu amigo Mayora apontou. E por certo que como crítico que sou (e devo dizer: socialista!) não acredito que o melhor seja deixar a operacionalização do direito e mesmo as discussões teóricas dogmáticas nas mãos de conservadores (e aqui reconheço a importância de um trabalho de contenção de dentro do Direito). Mas esta operacionalização e suas reflexões teóricas devem ter plena consciência do limite rígido que o Direito impõe a todo e qualquer ato político verdadeiramente libertário, inscrevendo os atos dos juristas em uma ambivalência inarredável.

De volta ao blog.

Chegou a hora, há muito postergada, de voltar a escrever neste blog.
No último texto estava muito comprometido com a leitura de autores "pós-modernos" (utilizando-me do termo de forma bastante genérica e 'quase irresponsável') e passava por uma profunda crise em relação a minha posição como socialista e minha relação com os textos marxianos e marxistas. Agora chegou a hora de declarar o que fica e o que some daquilo que escrevi anteriormente.

Cheguei a escrever no primeiro texto que passava por uma certa angústia de ter que desconstruir o marxismo para reconstruí-lo posteriormente sem saber que pedaços se perderiam no caminho. Acredito que, com a ajuda de bons autores, este é o processo pelo qual estou passando atualmente. Por outro lado cheguei a afirmar que precisava deixar de lado a leitura de autores como Giddens, Bauman, Galimberti e até mesmo Corbisier, Žižek e Lenin. Pois é... eu menti!

Na verdade não consegui me distanciar de Corbisier e principalmente de Žižek, além de ter voltado a me deparar com Lenin através do filósofo esloveno. Na publicação de outubro de 2007 da revista Cult sobre a 'Renovação da Esquerda' tive contato com alguns autores que hoje me são cruciais para a compreesão desta 'pós-modernidade' e de sua relação com o marxismo e a esquerda de forma geral: o próprio Žižek, Vladimir Safatle, Alain Badiou etc. E este primeiro contato me permitiu voltar confortavelmente à leitura de alguns clássicos marxianos como Althusser, Corbisier (que considero, particularmente, um clássico nacional) etc., além de me ter trazido uma praserosíssima reconciliação com a psicanálise lacaniana, abandonada irresponsavelmente por mim há algum tempo.

Com isso, pretendo reinaugurar o blog expondo, a partir de agora, alguns pensamentos pontuais que têm como referencial, sobretudo, a obra de Slavoj Žižek.

Bem vindos de volta ao blog!