terça-feira, 3 de março de 2009

A Juó Bananere. Sua agonia é o seu triunfo!

Quando penso no legado da cultura italiana não posso deixar de lembrar 3 fenômenos que maracaram minha vida: a história de Sacco e Vanzetti, anarquistas italianos condenados a morte por um crime que não cometeram (uma das mais conhecidas injustiças da justiça norte-americana que foi para as telas do cinema sob direção de Giuliano Montaldo); o cinema neo-realista, paixão de adolescência, e as músicas do nosso saudoso Adoniran Barbosa (diga-se de passagem meu sambista preferido!).

Podemos começar falando do cinema neo-realista. Mas antes, melhor falar um pouco sobre uma pontinha da literatura neo-realista, ou melhor, de sua concepção. No prefário a "A trilha dos ninhos de aranha", Ítalo Calvino põe como o grande problema da literatura neo-realista "como transformar em obra literária aquele mundo que para nós era o mundo", uma vez que, no momento em que se punha a escrever a obra, no momento de surgimento da literatura neo-realista italiana, a "escola" neo-realista era ainda a "verde vontade de fazer literatura". Pois bem, com o cinema neo-realista o mesmo não parece imperativo? Fazer cinema neo-realista não é simplesmente a "verde vontade de fazer cinema" passando pela dificuldade de transformar o mundo em lingüagem cinematográfica?

Muito embora, um certo filósofo por quem tenho até mesmo um certo apreço (não... idolatria jamais!) tenha dito que cinema neo-realista é coisa de intelectuais degenerados enquanto a maior contribuição italiana para o cinema tenha sido os western-spaguettis e as comédias eróticas da década de setenta, não podemos deixar de nos deparar com o fato de que estes estilos sejam, nada mais nada menos, do que um certo amadurecimento direto daquela "vontade verde de fazer cinema".

E a dificuldade em traduzir o mundo em linguagem literária/cinematográfica... o que dizer a respeito? É ainda Calvino que, em todo o prefácio a sua obra, em 1964, fala recorrentemente desta dificuldade e do remorso que sente em não conseguir cumprir até o fim com seu objetivo: transformar a realidade em lingüagem literária sem passar por um naturalismo (uma profunda sensibilidade crítico-filosófica do autor, diga-se de passagem) e, portanto, engajando-se na "realidade objetiva" que pretende retratar. Podemos recorrer à psicanálise lacaniana para apontar que tal projeto é impossível por si só! Porém não podemos deixar de apontar que o próprio romancista é quem diz que, na descrição objetiva de personagens e cena, cai na descrição de "traços exacerbados e grotescos, caretas contorcidas, obscuros dramas visceral-coletivos" remontando ao expressionismo. Sendo zizekianos, não podemos arriscar a hipótese de que, no fim das contas, a diferença entre neo-realismo (italiano) e expressionismo (alemão) no cinema não constitui uma relação de Paralaxe? Uma diferença mínima de dois olhares sobre um mesmo objeto?

Entretanto, a questão fundamental parece ser um certo insight Ético-político, de extrema atualidade, no mesmo prefácio do autor quando responde aos ataques dos mais conservadores a respeito da luta dos partigiani na resistência italiana:

"Mesmo nos que se lançaram na luta sem um motivo claro, agiu um impulso elementar de resgate humano, um impulso que os tornou cem mil vezes melhores que vocês, que fez com que se tranformassem em forças históricas ativas, que vocês jamais poderão sonhar ser!"

Com a devida licença, gostaria somente de acrescentar que não é que "mesmo nos que se lançaram na luta sem motivo claro agiu um impulso elementar", ao contrário, acredito que neles o impulso elementar Revolucionário era mais autêntico do que nos que se engajaram na luta por um motivo explícito, mais ou menos individualista.

E Calvino conclui, a respeito daqueles que durante a luta, passavam de um lado para outro: "só a morte dava às suas escolhas uma marca irrevolgável".

Aqui podemos nos debruçar sobre Sacco e Vanzetti. Sua história é a de dois anarquistas italianos, que viviam em Boston nos Estados Unidos no início do século XX. Num determinado momento, houve um assalto a mão armada em que alguns homens ricos da cidade acabaram mortos. Sem ter nada a ver com o fato, mas sendo privilegiadamente selecionáveis pelo sistema penal da época, Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, foram a julgamento pelo episódio. Ao perceber que sua defesa era completamente irrelevante, o advogado resolveu transformar todo o júri em um manifesto político, uma vez que os italianos já estavam condenados a morte desde o princípio. O mais marcante porém é o discurso dos dois às vésperas da execução quando, a respeito da mobilização que causaram em todo país nos meios intelectuais e proletários da época declararam: "Nossa agonia é o nosso triunfo"!

Esta não é a ética revolucionária por excelência? A morte é que dá sentido a nossa Causa (para qualquer iniciado em psicanálise isto tem um nome: pulsão de morte).

Entretanto, tal passo não é suficiente. É preciso haver uma verdade para o sujeito revolucionário. Uma verdade maior do que ele, em nome da qual ele fale, a despeito de quaisquer idiossincrasias pessoais. É isto que Calvino tem em mente quando diz que, a respeito do remorso que sentia em não conseguir descrever a experiência revolucionária, "outra coisa, nas minhas preocupações daquele tempo, era uma definição do que fora a guerra partigiana".

Esta outra coisa, justamente por ser Outra (acrescentamos um maiúsculo bastante lacaniano) e por ultrapassar a subjetividade, pode ser o ponto de identificação universal da verdade... algo que ultrapassa todos os indivíduos, mas que só pode ser acessado a partir de uma posição individual.

Não é isso que Calvino tem em mente quando explica que sua existência burguesa, como sensação de não-pertencimento à classe burguesa é exatamente a mesma existência do menino Pin, personagem do romance "A trilha dos ninhos de aranha" que não-se-pertence ao grupo dos garotos da mesma idade?

É este mesmo descompasse, indicador de Verdade, de uma Ética que ultrapassa a identificação com o rosto levinasiano, não é encontrado na vida de Juó Bananere? Descendente de portugueses que foi estudar engenharia em São Paulo e lá se defronta com os imigrantes (proletários) italianos, escrevendo poesias no dialeto deles e sobre a realidade deles? A questão não passa por quanto exatamente suas poesisas acessam a vida real daqueles imigrantes... antes, devemos procurar nesta identificação com um não-rosto, uma certa comicidade e uma certa tristeza. Entretanto, os poemas mais belos, tristes ou nostálgicos, não deixam de transbordar comicidade... E se a Ética revolucionária é a Ética com quem perdeu toda a dignidade para ser trágico, o passo cômico é o indicador da política revolucionária por excelência! A Ética com quem é inumano demais para ser trágico.

Não é sequer necessário dizer que nosso saudoso Adoniran Barbosa (ou João Rubinatto) é o neto de Juó Bananére: o samba cômico, que não-se-pertence como samba (pois nasceu no Bexiga) e que é uma outra coisa (comum entre os operários, negros, italianos, etc.) que conviviam na mesma condição sócio-política em que foram jogados pela modernização do nosso país!

Por toda esta ligação da bela tríade do legado cultural italiano para o Brasil, neo-realismo, Adoniran Barbosa e Juó Bananere, é necessário resgatar este poeta modernista pré-modernista, este italiano não-italiano, este que é um exemplo de uma alteridade multiculturalista Verdadeira, já que o Verdadeiro multiculturalismo é aquele que liga culturas através do ralo da pia, daquilo que perdeu toda a dignidade de ser trágico, e é a Verdade!

3 comentários:

Felipe disse...

O grande problema do cômico, para se tornar canônico, é que seu efeito, para fins de comédia, se gera pela inferioridade do sujeito - ao contrário da comédia espirituosa, que se vale de insights alegres que põem à evidência a inteligência do espirituoso. Juó Bananére, por vir de Alexandre Marcondez Machado, é por si só um personagem: não consta das ficções, mas ele é uma ficção que emerge do próprio texto. Isso é uma lição valiosa para suspender o mito da sinceridade romântica. Nada mais revelador da natureza da lírica que o cômico de Bananére.
Porém, Bananére não alcançou nossos livros secundaristas de literatura. A um pela comédia já ser considerada uma literatura menos nobre. E, dentro da comédia, o cômico é ainda menor. E, dentro do cômico, o autor que se assume em posição tal vira ínfimo.

E eis a grande vingança: é Juó Bananére quem coloca nos holofotes mais brilhantes a natureza de todo construto da poesia lírica - que longe do cômico insiste na aura misteriosa dos poetas malditos autobiográficos (e por isso os mais falsos e medíocres); é Juó quem inverte a nobreza da poesia épica, onde os herois só são herois porque os personagens partilham do mesmo mundo do leitor.

Juó nos coloca no abismo, este nada que nos faz rir.

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

E cômico também - ou antes, talvez falemos da mesma coisa - por guardar uma certa distância de si mesmo. Uma certa lacuna entre o personagem e o que ele representa, e não um personagem que é, diretamente o que representa no cenário ficcional.
A grande questão de importância política talvez seja o fato de Alexandre Marcondez Machado também ser um "personagem que não é diretamente o que representa": ele próprio sem passar por Juó! Um burguês engenheiro que se aproxima da bohemia italiana em São Paulo. Um burguês engenheiro que não é o que representa (como burguês e engenheiro). Este distanciamento cômico de si mesmo parece ser duplamente refletido em Juó/Alexandre.
Assim como, a realidade de um imigrante italiano operário, contada por ele, nunca vai coincidir exatamente com o que ele narra. A tentativa de um italiano narrar sua vida para Alexandre também era cômica... e é nessa lacuna irredutível entre os dois (o italiano e o Alexandre) e em cada um deles (o italiano que não consegue ser diretamente o que narra de sua realidade e o Alexandre que não é o que representa como burguês) é um terreno bastante propício pra Ética!

Cristiano disse...

Acredito que esse post retrata muito bem a ética do Levinas. Não vejo como um para-além, mas sim como a tradução do que eventualmente (e eventualmente justamente por ser a minha interpretação da leitura, portanto carente de convicções) ele já havia tratado na obra "Entre Nós - Ensaio Sobre Alteridade": o fato de que a exterioridade é a morte da universalidade do eu. Já repeti essa frase inúmeras vezes, mas recorro a ela por parecer novamente pertinente. Quando a postura ética se localiza entre o italiano e o Alexandre, nesta lacuna que os separa, não é justamente por que essa lacuna representa o fim do individualismo na sua forma de eu universal? O lançar-se ao lugar inominável que divide o sujeito italiano do sujeito Alexandre não é nada mais do que aceitar a exterioridade (ou a forma do outro - ou outrem -, mas não no sentido de sujeito stricto sensu, mas sim enquanto sujeito localizado culturalmente e em toda sua dimensão histórica) como o igual-a-si-mesmo, mergulhando neste mundo que é alheio ao meu, mas ao mesmo tempo sem perder a minha própria identidade (e aqui recorro à idéia de Ser do Heidegger). Portanto, o binômio italiano-Alexandre representa muito bem o pressuposto ético expresso pela máxima de que o eu é o tu, e vice-versa. Talvez poderíamos também buscar no pressuposto kantiano de "colocar-se na posição do outro" uma forma de traduzir o que esse vácuo/vazio inominável poderia representar. Parabéns pelo post!