sexta-feira, 7 de maio de 2010

Pena e Guerra: Tobias Barreto como profeta dos novos tempos.

Tobias Barreto, o eminente jurista brasileiro, sergipano, do século XIX, proclamou a célebre frase em seus fundamentos do direito de punir: "quem quiser encontrar um fundamento para a pena, deverá antes buscar por um fundamento para a guerra". Com isso, Tobias Barreto selava de uma vez por todas o vínculo que ligava punição e guerra: o de estarem no limiar de legitimidade do direito.

O argumento foi resgatado mais tarde pelos fundadores da Teoria Agnóstica da Pena, os penalistas e criminólogos Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista. Com as crescentes criminalizações das classes dominantes, pelo menos no que diz respeito a setores da burguesia vitimados pela inflação legislativa de crimes contra o patrimônio público, crimes empresariais ou ambientais, a criminologia radical, de vertente marxista, titubeou diante do argumento explícito de que o direito penal era um mecanismo de repressão da classe dominante sobre a classe pobre, proletariado ou lumpesinato. Como agora explicar que o direito penal se preocupava com a criminalização da classe dominante (ou pelo menos de alguns setores dela)?

A resposta pós-moderna (porque não?) da Teoria Agnóstica foi: a "verdade" sobre a pena é demasiadamente complexa. Diante disto, nada podemos fazer senão admitir que ela não é jurídica (isto Tobias Barreto, Carl Schmitt (em sua teoria sobre a soberania) já explicaram. O que resta, portanto, é trazer a obscura-essência da pena como dado interno às teorias penais progressitas (que visam a contenção do poder punitivo) e fazer da epistemologia jurídico-penal um sistema de categorias baseada no seguinte dualismo: a legitimidade da pena é desconhecida (por isso seu caráter Agnóstico), mas, uma vez que ela existe de fato, o que o direito pode fazer é lutar contra o excesso constitutivo da legitimação punitiva: seu caráter não-legal.

O contraponto, a resposta marxista mal-digerida, foi que tal processo seria apenas um processo ideológico, ilusório (ou simbólico na terminologia jurídico-penal) que mascarava aquilo que sempre foi: um mecanismo real de repressão à pobreza. O raciocínio "marxista mal-digerido" não é de todo equivocado, afinal as prisões continuam sendo um holocausto da pobreza. Além disso, as condições sócio-econômicas concretas possibilitam que a classe dominante tenha um acesso privilegiado à justiça de qualidade, o que leva invariavelmente a um maior "respeito" no que concerne às garantias fundamentais do processo penal.

O questionamento hegeliano básico, quanto à "coisa transcendental" kantiana, a idéia de que a realidade é uma dimensão que transcende às ilusões constitutivas de nossa percepção finita, é: se a realidade é mesmo transcendental às ilusões de nossa finitude, o que leva ela a necessariamente aparecer sob a forma de uma ilusão? Resposta: a realidade não é aquilo que está além das ilusões, mas as ilusões são uma necessidade da dinâmica real. Neste sentido, o equívoco básico da teoria criminológica marxista é eminentemente kantiano: se a realidade do sistema penal continua sendo exatamente a mesma porque diabos foi necessária a aparição de uma ilusão nova, sob a forma da inédita proliferação das leis que criminalizam as classes dominantes?

O que é verificável, portanto, é que tanto o marxismo criminológico mal-digerido quanto a Teoria Agnóstica da Pena (facilmente classificável entre a ladainha da democracia-por-vir) são uma opção falsa enquanto atitudes epistemológicas eminentemente kantiana: o marxismo por considerar a relação entre realidade concreta e ilusão/ideologia estritamente dentro do campo do dualismo kantiano (quando na verdade a dialética hegelo-marxista é monista). A Teoria Agnóstica por se pautar por aquilo que Kant chamaria de ideais regulativos ou seja, coisas sobre as quais não sabemos, ou não podemos dizer sobre sua existência, mas agimos como se existissem: a legitimidade da pena, embora não exista juridicamente, agimos como se ela existisse, mobilizando assim o aparato categorial do Direito Penal de Contenção.

A resposta deveria estar, portanto, na forma como guerra e pena se relacionam, cada uma delas, com a ideologia jurídica vigente, ou melhor, naquilo que escapa ao âmbito da fantasia jurídica oficial. Paulo Arantes, em seu extinção, demonstra como as diferentes formas de legitimação da guerra aparecem juridicamente desde os fins da idade média, até os dias de hoje, conforme aos processos de desenvolvimento da dinâmica do capital: da acumulação primitiva aos atuais tempos de crise estrutural. Para Arantes, enquanto os ainda incipientes Estados Modernos estavam submetidos à autoridade moral da Igreja, toda guerra só poderia aparecer como guerra justa ou justus bellum. A Guerra contra os não-cristãos (que estavam fora da religião cristã, e portanto fora da própria humanidade) que possibilitava a intervenção militar permanecida sob os limites jurídicos e religiosos impostos pela Igreja: a guerra pela cristandade era, em si mesmo justa. Mas ainda assim, permanecia sob proscrições religiosas que determinavam os limites técnicos do potencial bélico empregado em proporcionalidade com a finalidade (por si só justa, já dissemos).

A configuração dos Estados Modernos, pautados juridicamente pelo princípio de Soberania impunha uma lógica diferente: a extinção de qualquer autoridade moral superior que regulasse a intervenção bélica. Assim sendo, o que prevaleceu foi o princípio de equilíbrio de forças, estabelecido no tratado internacional da Vestfália. O que é interessante, entretanto, é que o tal equilíbrio de forças, a União Pacífica era decorrência da idéia jurídica de soberania: nada poderia estar acima da soberania dos Estados. Logo, a guerra não poderia se legitimar por seu caráter justo contra um agente injusto, imoral. Todos os estados tem o direito de se declarar em guerra. O motivo da guerra seria o atentado contra a soberania do Estado, a ameaça concreta ao "equilíbrio de forças". Entretando a mesma Soberania levava, ao plano interno, a regulação do excesso, daquilo que Carl Schmitt chamou de exceção: a constitucionalização progressiva do poder excessivo do soberano. Portanto: no plano externo a constante luta contra uma autoridade moral/jurídica superior, no plano interno, a constante constitucionalização e regulação que fortificava a autoridade nacional superior: o soberano que decidia sobre a normalização da situação jurídica a partir da resposta legal contra os criminosos ou imorais, os fora-da-lei (ou seja, a constante complexificação do aparato e da teoria jurídico-penal para punir melhor, com qualidade, e dentro da lei).

O início da Guerra Fria, com o constante aperfeiçoamento do armamento high tech de potencia globalmente letal, levou a um breve período de apatia política diante da guerra: a ameaça de uma guerra definitiva levava a uma paz fabricada, a um cálculo frio e político sobre as consequências da indizível catástrofe nuclear. Com o colapso dos SOREX (Socialismo Realmente Existente) em 1989 os Estados Unidos, finalmente, ganham a corrida armamentista e se tornam A Nação capaz de decidir sobre o futuro do mundo. Os Estados Unidos se tornam então, O Estado do Capital, necessário à configuração do Capital pós-70 quando finalmente adquire proporções globais.

Com a Guerra do Golfo (e a atual guerra do Iraque) a lógica bélica se transforma radicalmente: não mais a guerra como continuação da política (isso nossos pós-modernos e democratas-por-vir consideram unanimemente bárbaro). Agora a perspectiva pós-clausewitziana da política como continuação da guerra (da Guerra Fria). A novidade das duas guerras citadas foi a metáfora legalista. Recorremos à psicanálise: que quer dizer metáfora? Essencialmente um movimento de "deslocamento". A perspectiva doméstica de soberania se aplica agora (se desloca) ao plano internacional. O Inimigo não é uma nação também com direito de declarar-se em guerra. Mas um criminalizável global. Assim, o ideal medieval de Guerra Justa retorna na mais apocalíptica perspectiva do armamentismo bélico high-tech. Nasce então um ideal de Guerra Cosmopolita (por mais bizarro que o termo possa parecer sob a perspectiva filosófica, especialmente aos democratas kantianos). Ao mesmo tempo em que a guerra é declarada na carta fundacional das Nações Unidas como um crime, ela se torna prática cotidiana, legitimável legalmente, sob a autoridade de uma soberania global.

Desde a Guerra do Vietnã, os soldados não sabem mais porque lutam. A guerra se torna um setor apartado do todo social. As guerras não se encontram mais na militarização total das sociedades. Ela se tornou uma operação de profissionais, incluindo inclusive em seu vocabulário, a parafernália lingüística da flexibilidade, própria da economia global do Capital em etapa de financeirização. Tanto é que agora sequer distinguimos entre economia de paz e economia de guerra. A Guerra continua sendo tão rentável para o mercado financeiro como qualquer outro investimento. Aliás: sequer distinguimos mais entre guerra e paz... os EUA são um país em guerra? O dia-a-dia do american way of life é profundamente afetado pelas (correntes) guerras contra o Iraque ou o Afeganistão (no caso não contra o Afeganistão, mas contra uma organização não-governamental, os Talebãs)?

Essa indistinção entre paz e guerra, é o que leva àquilo que Martin Shaw chamou de sociedades pós-militares, sociedades em que a ordem militar, aparece como um setor profissional em apartado, um armamentismo completamente incorporado à cultura do consumo de massa, levando a um declínio da experiência militar das populações (não só o serviço militar deixou de ser obrigatório em muitos países, mas a própria "experiência militar" se torna flexível, policialesca, e indireta: em vez de matar pessoas, ela mina as possibilidades concretas de sobrevivência).

O que leva a conclusão de Arantes: "um tal fosso de equívocos e engodos mútuos entre civis e militares estaria empurrando ainda mais os setores do establishment "orientados par ao combate" para a zona de sombra da ameaça pretoriana à legalidade civil, sem falar na dificuldade crescente de se preservar um governo limitado pela lei nesses países, cada vez mais envolvidos em coalizões antiterror e, portanto, propensos a rotinizar as retaliações extralegais contra seus opositores internos" (Arantes, 2007: p. 61). Ou seja: políticas de terror punitivo.

Se nos for permitido uma digressão dialética sobre o fenômeno: não observamos que a guerra, sua legitimidade obscena, se enquadra perfeitamente numa tríade hegeliana? Primeiramente um "em si", a guerra em si mesmo justificável pelo ideal medieval da autoridade moral do papa, todo estado cristão, pelo próprio fato de ser um estado cristão, está em si legitimado a realizar a Cruzada; posteriormente um "para si" a guerra como legítima unicamente quando se desequilibram as soberanias internas dos Estados, a guerra é unicamente para as soberanias dos Estados; por último, a guerra como "em-si-e-para-si" a guerra cosmopolita como aquilo que define a soberania, ao mesmo tempo em que define o excesso fora-da-lei do soberano global.

Mas não é possível também ver no processo histórico de formação das prisões uma mesma tríade hegeliana? Se bem que a prisão é uma necessidade para a fábrica é possível ver, em primeiro lugar o encarceiramento do exército de reserva como uma necessidade "em si", uma vez que o processo incipiente de acumulação do capital precisava de trabalhadores já disciplinados. Em segundo lugar, a prisão como um "para si", com o crescimento do desemprego estrutural, a prisão se torna o depósito daqueles não-integráveis no processo produtivo. Sua necessidade de disciplinarização da pobreza (na medida em que a fábrica não mais necessida dos já-disciplinados) é secundária a si mesma. Por último, no estádio final do capitalismo financeiro, a prisão como necessidade em-si-e-para-si: agora, a prisão é em si mesmo rentável. Não é por outra razão que as "Correction Companies" americanas estão entre os mais rentáveis negócios geradores de lucro do mercado financeiro ianque.

O que os pais da teoria Agnóstica não se preocuparam em ver, é que a própria dicotomia barretiana guerra e pena se põe como os dois primeiros momentos de uma tríade hegeliana, quanto à configuração do Estado de Exceção: enquanto a guerra, nos princípios modernos do equilíbrio e da união pacífica, era "externa à soberania" ela era para a soberania. Enquanto a pena, representava a própria soberania em si, uma vez que o conceito de Schimitt não deixa dúvidas: "soberano é aquele que decide sobre a exceção", ou seja sobre a punição de seus cidadãos. O atual estádio do desenvolvimento do Capital ao mesmo tempo que não mais distingue entre guerra e paz, economia de guerra e economia de paz, encarceiramento produtivo/lucrativo, encarceiramento improdutivo/não-lucrativo, também não mais distingue sobre a própria diferença entre guerra e punição. Na atual indistinção entre os termos guerra e pena a frase de Tobias Barreto completa sua professia: finalmente guerra e pena são definitivamente uma única e mesma coisa, indistinguíveis como sói a acontecer com toda síntese hegeliana de termos antitéticos.

Como tal ambos são apenas dois pontos de vista complementares (ou paraláticos, para citar Zizek) de um mesmo objeto: a dimensão pulsional do capital que exige o excesso (a desterritorialização) para decidir sobre a normalidade (a territorialização). E neste processo, é uma pena que o mercado financeiro, flexível, flutuante, etc., necessite da criminalização de alguns traders burgueses (imorais e criminosos) para normalizar sua circuação.


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