domingo, 23 de maio de 2010

Porque a psicanálise é uma ciência materialista (e maoísta)?

Recentemente foi resgatada a crítica pretensamente materialista à epistemologia da psicanálise, comparando-a a homeopatia e questionando sua validade enquanto ciência, aproximando-a de um saber religioso. A obra é de Michel Onfray, seu último livro polêmico, Le Crépuscule d'une idole, l'affabulation freudienne. O argumento não é nada novo e parece realmente dominar um grande setor da esquerda. Mas da onde vem o preonceito metodológico à epistemologia e clínica psicanalítica? Sobretudo, porque frequentemente ele se aponta como uma "crítica materialista"?

Para responder a essas perguntas, em se tratando de um ataque à epistemologia da psicanálise, onde encontramos uma teoria do conhecimento na psicanálise? Ou, o que não é a mesma coisa, de onde a psicanálise retira sua teoria do conhecimento?

No dia 16 de agosto de 1893, falece em Paris o Dr. J.M. Charcot, Médico, Psiquiatra e Mestre de Sigmund Freud. Em ocasião do fato, Freud publica, em agosto do mesmo ano, um texto em homenagem ao trabalho clínico e teórico de Charcot, em especial pela sua influência para a fundação da psicanálise. Como indica Freud, Charcot teria sido o primeiro a se debruçar sobre uma série de quadros psiquiátricos ignorados pela psiquiatria e pela medicina teórica da época. Dentre eles, Charcot foi o primeiro a perceber que os sintomas histéricos, manifestos em grande parte no corpo (paralisias, tiques, etc), estavam ligados a encadeamentos lógicos de representações do paciente que remontavam a um fato ocorrido na vida do paciente. Fato este de que raramente se lembravam os histéricos e histéricas. De sorte que estes encadeamentos inconscientes revelavam uma recusa do eu do paciente em lidar com o fato ocorrido. O fato, permanecia assim, velado ao eu do paciente, porém ainda presente por meio destas representações "encarnadas" no sintoma corpóreo.

Mas se os resultados das pesquisas de Charcot (em grande parte por meio do método hipnótico) deslumbravam Freud, por óbvias razões, não menos o deslumbrava o método empregado por Charcot. Segundo Freud, o médico francês "acostumbraba considerar detenidamente uma y outra vez aquello que no lê era conocido y robustecer así, dia por dia, su impresión sobre ello hasta um momento em el qual llegaba de súbito a su compreensión. Ante su visión espiritual se ordenaba entonces el caos, fingindo por el constante retorno de los mismos sintomas, surgiendo los nuevos cuadros patológicos, caracterizados por el contínuo enlace de ciertos grupos de síndromes. Haciendo resaltar, por medio de cierta esquematización, los casos complejos y extremos, o sea los “tipos”, pasaba luego de éstos a la larga serie de los casos mitigados; esto es, de las formes frustrées, que, teniendo su punto inicial en uno cualquiera de los signos característicos del tipo, se extendían hasta lo indeterminado"*.

Em suma, o método charcotiano se resumia à tríade "observação clínica - conceitualização - inferência clínica". Ou seja, o método charcotiano, e sua teoria do conhecimento, se tratava de um processo que tinha por origem e finalidade a prática clínica, mediados (origem e fim) pela conceitualização teórica (enquadramento conceitual das síndromes) a que Charcot chegava por meio de uma certa "visão espiritual", segundo Freud.

A ênfase deste método na prática é explícita."Charcot no se fatigaba nunca de defender los derechos de la labor puramente clínica, consistente en ver y ordenar, contra la intervención de la medicina teórica". Quando um de seus discípulos, certa vez, lhe dirigiu a seguinte demanda "isso não pode ser, pois contraria a teoria de Young-Helmholtz", o mestre lhe respondeu "La théorie c'est bon, mais ça n'empeche d'exister", ou seja, a teoria é boa, mas isto não deixa de existir: sendo este isto aquilo que é capturável apenas pela vivência (e convivência) clínica, aquilo que não está mapeado em nenhuma teoria pré-estabelecida.

Em outras palavras, todo método charcotiano consistia na observação sistemática realizada pela prática clínica dos fenômenos frequentemente ignorados pela medicina teórica, e ignorados porque não podem ser explicados em concordância com os pressupostos básicos de tal ou qual teoria. Estes fenômenos são então sistematizados posteriormente por meio de um trabalho teórico de forma que se encontrem as relações mais íntimas entre eles de forma que acabem constituindo, uma porção deles, um só quadro sintomal, uma só "síndrome". O que então permite o retorno à prática para reordenar os fenômenos e ajudar na melhor compreensão das formes frustrées os sintomas que frustravam o enquadramento conceitual, que resistiam à racionalização (ou simbolização). Tudo se passa, para Charcot, como se houvesse duas dimensões irredutíveis entre si no conhecimento: a dimensão prática/clínica, e a dimensão teórica. Duas etapas do conhecimento que jamais se confundem, mas que não existem independentemente uma da outra.

Mas onde mais encontramos uma postura "antiteórica" similar e que, surpreendentemente recorre à mesma tríade prática-teoria-prática proposta por Charcot? E inclusive postulando um mesmo corte no saber, entre as dimensões prático-perceptiva e teórico-conceitual? A resposta deve ser imediata: em Sobre a Prática de Mao Tsé-Tung. Como demonstra a introdução de Mao ao texto de julho de 1937: "havia um certo número de camaradas em nosso Partido que eram dogmáticos e que por um longo período rejeitaram a experiência da revolução chinesa, negando assim a verdade de que o Marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação".**

Mao não só rejeita a postura dogmática ou teoricista de alguns camaradas de partido como também funda uma teoria materialista do conhecimento fundada na mesma noção de observação de fenômenos - teorização/conceitualização - inferência prática. É inclusive repetido o tema charcotiano de retorno à prática para a melhor compreensão das formes frustrées (literalmente: formas frustradas). Como diz Mao "se um homem deseja ser bem sucedido em seu trabalho, isto é, atingir resultados antecipados, ele deve fazer suas idéias corresponderem com as leis do mundo externo objetivo; se elas não correspondem, ele fracassa em sua prática. Depois de fracassar, ele aprende suas lições, corrige suas idéias para fazê-las corresponderem às leis do mundo externo, e pode assim transformar fracasso em sucesso; é isto o que quer dizer 'o fracasso é a mãe do sucesso'".

Mas alguém poderia objetar: que Mao e Charcot estejam de acordo em construir uma teoria do conhecimento baseada na tríade prática-teoria-prática em que o fracasso prático se põe como um desafio teórico que tem como finalidade melhorar a prática, transformando frustração em sucesso, dando atenção justamente aos fenômenos práticos ignorados pelo saber posto, tudo bem. Mas a tal "visão espiritual" de Charcot não o diferencia radicalmente do método eminentemente materialista de Mao? Não é verdade que Charcot seria extremamente idealista ao postular que a mudança qualitativa do saber teórico ocorre como que por passe de mágica, com o surgimento expontâneo de uma visão?

É aqui que a coincidência se torna ainda mais surpreendente. É que para sustentar tal estrutura triádica do conhecimento, Mao, como Charcot, distingue duas dimensões do conhecimento humano: a dimensão perceptiva e a dimensão cognitiva. Segundo Mao a percepção só consegue captar os fenômenos no caos, na relação exterior que as coisas guardam entre si, ou seja, relação não-sistemática entre as coisas. Somente o conhecimento cognitivo, que diz respeito à conceitualização e teorização das percepções sensoriais práticas, pode capturar (por mais paradoxal que pareça) a relação interna entre as coisas, aquela que pode sistematizar, enquadrar e conceitualizar os fenômenos. Citando o próprio Lenin, Mao afirma "todas as abstrações científicas refletem a natureza de forma mais profunda, verdadeira e completamente". Mas como exatamente, para Mao, o conhecimento avança do aspecto perceptivo para o cognitivo, o único capaz de capturar a "essência" do mundo material exterior e objetivo?

Segundo Mao: "Conforme a prática social continua, as coisas que fazem emergir as percepções sensoriais e as impressões do homem, no curso de sua prática são repetidas muitas vezes" - como nas observações clínicas de Charcot - "então uma mudança súbita ocorre no cérebro, no processo de cognição, e conceitos são formados [...] una as sobrancelhas e um estratagema virá a mente".

Mas que quer dizer este desparate? Seria Mao um idealista enrustido? Na verdade o que significam a "visão espiritual" de Charcot e o "estratagema" de Mao se referem à mesma noção da Intuição na dialética hegelo-marxista: uma decisão em ato que funda uma novidade e que Alain Badiou, filósofo maoísta francês, identifica como sendo o próprio cerne do pensamento ontológico: uma decisão que rouba o lugar do indecidível, do indecifrável pelo saber posto, o saber do stablishment. A esta decisão se dá o nome de axioma: uma sentença em ruptura com a lógica do mundo existente e que abre caminho para um processo-verdade que comprova retroativamente a validade da sentença a partir da fidelidade em ato (prática) a ela.

Tal como o poema que funda e funde um novo mundo de relações entre coisas, em oposição à lógica da prosa, eminentemente dianóica (= organização e encadeamento lógico de argumentos), o axioma (visão espiritual, estratagema, ou qualquer outro nome) funda e funde relações externas e caóticas entre as coisas que o saber "em prosa" ou dianóico tende a ignorar. Em se tratando de uma lacuna radical entre conhecimento perceptivo (prática) e conhecimento cognitivo (teórico) a única possibilidade de "avançar" nesta lacuna, é a fundação de um axioma, "por conta e risco" do sujeito que o permite organizar o caos do mundo objetivo.

Estamos tratando aqui de um argumento contrário à glosa dominante da filosofia da linguagem: esta decisão axiomática, que Badiou define como sendo o cerne do pensamento ontológico, precede a lógica. E não o contrário. Portanto, é a decisão sobre as leis da natureza (partindo, é claro da observação prática), que funda as leis da natureza. O que explica o paradoxo de Lenin em afirmar que somente o conhecimento teórico consegue compreender profunda, verdadeira e completamente o mundo objetivo.

Mas o que há de materialista nisto? Como nos diz Zizek, o materialismo é a única resposta possível para fenômenos "imateriais". Isto porque é próprio ao materialismo dialético considerar a irredutibilidade entre a razão humana, e as leis da natureza, uma lacuna tão radical que exige um "salto de fé" para que haja alguma avanço na compreensão do mundo objetivo. A postura idealista, é precisamente aquela que "coisifica" ou reifica tais fenômenos imateriais na forma de entes transcendentais, amarrando uma lógica dianóica de mundo que só poderia existir caso o mundo objetivo tivesse sido criado por um ser virtuoso e plenamente consciente.

É bom lembrar, entretanto: que"a religião seja o ópio do povo", não quer dizer que não haja um lado teológico no materialismo. Que leva Benjamin a afirmar que a teologia é a mão que anima o boneco do materialismo histórico. (E que leva Plínio A. Sampaio, candidato do PSOL para presidência da república a firmar seu "marxismo com sotaque cristão"). É deste salto de fé que se trata. Desta produção de axiomas que abre o caminho para a verdade e que une profundamente marxismo e psicanálise: a fé na infinitude do homem. Pois o homem é infinito porque é capaz de produzir axiomas.
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*Freud, Charcot. Em Obras Completas. Vol.1.
**Mao, On Practice. Disponível em www.marxists.org

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Elogio à mobilização carcerária.

Na última quarta feira, dia 12 de maio, foi realizado em Curitiba o primeiro ato do MDPL, o movimento em defesa dos direitos das pessoas privadas de liberdade, que surgiu para lutar contra as constantes violações à humanidade e a dignidade dos internos nos presídios e cadeias publicas do Estado do Paraná, que constitui um verdadeiro holocausto social e racial inscrito na nossa própria ordem jurídica "Democrática".

O movimento foi atendido as pressas pelo secretário de Justiça do Paraná, Luis Carlos Giublin Junior, e tirado uma comissão de quatro mães e um advogado para ler a carta do movimento que incluia demandas como a de retirada da polícia repressiva de dentro dos presídios (pois os cuidados devem ser de competência dos agentes penitenciários), a entrada de alimentos (já que os presos comem de 20 em 20 horas) a entrada de cobertores e roupas (já que os presos dormem no chão, sem cobertas e estão praticamente nus no frio glacial do inverno curitibano) etc.

O Estado do Paraná é conhecido por ser, nas palavras de Nilo Batista, um "celeiro de grandes penalistas e criminólogos". E de fato o é. Nomes como os de Juarez Cirino, Juarez Tavares, entre outros, são reconhecidos pela intelectualidade progressita das ciências criminais no mundo todo. Mas é a primeira vez que as demandas criminais são postas em movimento pela militância carcerária.

E a militância carcerária é um importante veículo de promoção da justiça socialista, já que escancara o lado obsceno da nossa ordem jurídica democrática: a prisão é um lugar sem lei. Lá a lei não vale. E com isso se estrutura os campos de concentração para pobres que são as prisões latino-americanas. Só se acaba com a violência fora dos presídios, depois de se acabar com a violência dentro dos presídios!

O sistema penitenciário é um lugar de exceção (no conceito Schmittiano) da ordem jurídica democrática. Aqui encontramos a verdade do Estado do Capital: a repressão excessiva ao contingente pobre e marginalizado, o resto do processo de acumulação do capital. E é por isso que a punição, tal como concebida pela lógica do encarceramento, só é possível quando a Sociedade civil (para usar um termo um pouco arcaico) se aliena completamente do Estado.

Construir uma sociedade mais justa, é construir uma sociedade Pauliana, que substitua a Lei pelo Amor. E é por isso que a pauta socialista quer, como queria Cristo, "Amor, não sacrifício".

Um Elogio à mobilização carcerária do MDPL! Como diriam Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, "Nossa agonia é o nosso triunfo".

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Pena e Guerra: Tobias Barreto como profeta dos novos tempos.

Tobias Barreto, o eminente jurista brasileiro, sergipano, do século XIX, proclamou a célebre frase em seus fundamentos do direito de punir: "quem quiser encontrar um fundamento para a pena, deverá antes buscar por um fundamento para a guerra". Com isso, Tobias Barreto selava de uma vez por todas o vínculo que ligava punição e guerra: o de estarem no limiar de legitimidade do direito.

O argumento foi resgatado mais tarde pelos fundadores da Teoria Agnóstica da Pena, os penalistas e criminólogos Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista. Com as crescentes criminalizações das classes dominantes, pelo menos no que diz respeito a setores da burguesia vitimados pela inflação legislativa de crimes contra o patrimônio público, crimes empresariais ou ambientais, a criminologia radical, de vertente marxista, titubeou diante do argumento explícito de que o direito penal era um mecanismo de repressão da classe dominante sobre a classe pobre, proletariado ou lumpesinato. Como agora explicar que o direito penal se preocupava com a criminalização da classe dominante (ou pelo menos de alguns setores dela)?

A resposta pós-moderna (porque não?) da Teoria Agnóstica foi: a "verdade" sobre a pena é demasiadamente complexa. Diante disto, nada podemos fazer senão admitir que ela não é jurídica (isto Tobias Barreto, Carl Schmitt (em sua teoria sobre a soberania) já explicaram. O que resta, portanto, é trazer a obscura-essência da pena como dado interno às teorias penais progressitas (que visam a contenção do poder punitivo) e fazer da epistemologia jurídico-penal um sistema de categorias baseada no seguinte dualismo: a legitimidade da pena é desconhecida (por isso seu caráter Agnóstico), mas, uma vez que ela existe de fato, o que o direito pode fazer é lutar contra o excesso constitutivo da legitimação punitiva: seu caráter não-legal.

O contraponto, a resposta marxista mal-digerida, foi que tal processo seria apenas um processo ideológico, ilusório (ou simbólico na terminologia jurídico-penal) que mascarava aquilo que sempre foi: um mecanismo real de repressão à pobreza. O raciocínio "marxista mal-digerido" não é de todo equivocado, afinal as prisões continuam sendo um holocausto da pobreza. Além disso, as condições sócio-econômicas concretas possibilitam que a classe dominante tenha um acesso privilegiado à justiça de qualidade, o que leva invariavelmente a um maior "respeito" no que concerne às garantias fundamentais do processo penal.

O questionamento hegeliano básico, quanto à "coisa transcendental" kantiana, a idéia de que a realidade é uma dimensão que transcende às ilusões constitutivas de nossa percepção finita, é: se a realidade é mesmo transcendental às ilusões de nossa finitude, o que leva ela a necessariamente aparecer sob a forma de uma ilusão? Resposta: a realidade não é aquilo que está além das ilusões, mas as ilusões são uma necessidade da dinâmica real. Neste sentido, o equívoco básico da teoria criminológica marxista é eminentemente kantiano: se a realidade do sistema penal continua sendo exatamente a mesma porque diabos foi necessária a aparição de uma ilusão nova, sob a forma da inédita proliferação das leis que criminalizam as classes dominantes?

O que é verificável, portanto, é que tanto o marxismo criminológico mal-digerido quanto a Teoria Agnóstica da Pena (facilmente classificável entre a ladainha da democracia-por-vir) são uma opção falsa enquanto atitudes epistemológicas eminentemente kantiana: o marxismo por considerar a relação entre realidade concreta e ilusão/ideologia estritamente dentro do campo do dualismo kantiano (quando na verdade a dialética hegelo-marxista é monista). A Teoria Agnóstica por se pautar por aquilo que Kant chamaria de ideais regulativos ou seja, coisas sobre as quais não sabemos, ou não podemos dizer sobre sua existência, mas agimos como se existissem: a legitimidade da pena, embora não exista juridicamente, agimos como se ela existisse, mobilizando assim o aparato categorial do Direito Penal de Contenção.

A resposta deveria estar, portanto, na forma como guerra e pena se relacionam, cada uma delas, com a ideologia jurídica vigente, ou melhor, naquilo que escapa ao âmbito da fantasia jurídica oficial. Paulo Arantes, em seu extinção, demonstra como as diferentes formas de legitimação da guerra aparecem juridicamente desde os fins da idade média, até os dias de hoje, conforme aos processos de desenvolvimento da dinâmica do capital: da acumulação primitiva aos atuais tempos de crise estrutural. Para Arantes, enquanto os ainda incipientes Estados Modernos estavam submetidos à autoridade moral da Igreja, toda guerra só poderia aparecer como guerra justa ou justus bellum. A Guerra contra os não-cristãos (que estavam fora da religião cristã, e portanto fora da própria humanidade) que possibilitava a intervenção militar permanecida sob os limites jurídicos e religiosos impostos pela Igreja: a guerra pela cristandade era, em si mesmo justa. Mas ainda assim, permanecia sob proscrições religiosas que determinavam os limites técnicos do potencial bélico empregado em proporcionalidade com a finalidade (por si só justa, já dissemos).

A configuração dos Estados Modernos, pautados juridicamente pelo princípio de Soberania impunha uma lógica diferente: a extinção de qualquer autoridade moral superior que regulasse a intervenção bélica. Assim sendo, o que prevaleceu foi o princípio de equilíbrio de forças, estabelecido no tratado internacional da Vestfália. O que é interessante, entretanto, é que o tal equilíbrio de forças, a União Pacífica era decorrência da idéia jurídica de soberania: nada poderia estar acima da soberania dos Estados. Logo, a guerra não poderia se legitimar por seu caráter justo contra um agente injusto, imoral. Todos os estados tem o direito de se declarar em guerra. O motivo da guerra seria o atentado contra a soberania do Estado, a ameaça concreta ao "equilíbrio de forças". Entretando a mesma Soberania levava, ao plano interno, a regulação do excesso, daquilo que Carl Schmitt chamou de exceção: a constitucionalização progressiva do poder excessivo do soberano. Portanto: no plano externo a constante luta contra uma autoridade moral/jurídica superior, no plano interno, a constante constitucionalização e regulação que fortificava a autoridade nacional superior: o soberano que decidia sobre a normalização da situação jurídica a partir da resposta legal contra os criminosos ou imorais, os fora-da-lei (ou seja, a constante complexificação do aparato e da teoria jurídico-penal para punir melhor, com qualidade, e dentro da lei).

O início da Guerra Fria, com o constante aperfeiçoamento do armamento high tech de potencia globalmente letal, levou a um breve período de apatia política diante da guerra: a ameaça de uma guerra definitiva levava a uma paz fabricada, a um cálculo frio e político sobre as consequências da indizível catástrofe nuclear. Com o colapso dos SOREX (Socialismo Realmente Existente) em 1989 os Estados Unidos, finalmente, ganham a corrida armamentista e se tornam A Nação capaz de decidir sobre o futuro do mundo. Os Estados Unidos se tornam então, O Estado do Capital, necessário à configuração do Capital pós-70 quando finalmente adquire proporções globais.

Com a Guerra do Golfo (e a atual guerra do Iraque) a lógica bélica se transforma radicalmente: não mais a guerra como continuação da política (isso nossos pós-modernos e democratas-por-vir consideram unanimemente bárbaro). Agora a perspectiva pós-clausewitziana da política como continuação da guerra (da Guerra Fria). A novidade das duas guerras citadas foi a metáfora legalista. Recorremos à psicanálise: que quer dizer metáfora? Essencialmente um movimento de "deslocamento". A perspectiva doméstica de soberania se aplica agora (se desloca) ao plano internacional. O Inimigo não é uma nação também com direito de declarar-se em guerra. Mas um criminalizável global. Assim, o ideal medieval de Guerra Justa retorna na mais apocalíptica perspectiva do armamentismo bélico high-tech. Nasce então um ideal de Guerra Cosmopolita (por mais bizarro que o termo possa parecer sob a perspectiva filosófica, especialmente aos democratas kantianos). Ao mesmo tempo em que a guerra é declarada na carta fundacional das Nações Unidas como um crime, ela se torna prática cotidiana, legitimável legalmente, sob a autoridade de uma soberania global.

Desde a Guerra do Vietnã, os soldados não sabem mais porque lutam. A guerra se torna um setor apartado do todo social. As guerras não se encontram mais na militarização total das sociedades. Ela se tornou uma operação de profissionais, incluindo inclusive em seu vocabulário, a parafernália lingüística da flexibilidade, própria da economia global do Capital em etapa de financeirização. Tanto é que agora sequer distinguimos entre economia de paz e economia de guerra. A Guerra continua sendo tão rentável para o mercado financeiro como qualquer outro investimento. Aliás: sequer distinguimos mais entre guerra e paz... os EUA são um país em guerra? O dia-a-dia do american way of life é profundamente afetado pelas (correntes) guerras contra o Iraque ou o Afeganistão (no caso não contra o Afeganistão, mas contra uma organização não-governamental, os Talebãs)?

Essa indistinção entre paz e guerra, é o que leva àquilo que Martin Shaw chamou de sociedades pós-militares, sociedades em que a ordem militar, aparece como um setor profissional em apartado, um armamentismo completamente incorporado à cultura do consumo de massa, levando a um declínio da experiência militar das populações (não só o serviço militar deixou de ser obrigatório em muitos países, mas a própria "experiência militar" se torna flexível, policialesca, e indireta: em vez de matar pessoas, ela mina as possibilidades concretas de sobrevivência).

O que leva a conclusão de Arantes: "um tal fosso de equívocos e engodos mútuos entre civis e militares estaria empurrando ainda mais os setores do establishment "orientados par ao combate" para a zona de sombra da ameaça pretoriana à legalidade civil, sem falar na dificuldade crescente de se preservar um governo limitado pela lei nesses países, cada vez mais envolvidos em coalizões antiterror e, portanto, propensos a rotinizar as retaliações extralegais contra seus opositores internos" (Arantes, 2007: p. 61). Ou seja: políticas de terror punitivo.

Se nos for permitido uma digressão dialética sobre o fenômeno: não observamos que a guerra, sua legitimidade obscena, se enquadra perfeitamente numa tríade hegeliana? Primeiramente um "em si", a guerra em si mesmo justificável pelo ideal medieval da autoridade moral do papa, todo estado cristão, pelo próprio fato de ser um estado cristão, está em si legitimado a realizar a Cruzada; posteriormente um "para si" a guerra como legítima unicamente quando se desequilibram as soberanias internas dos Estados, a guerra é unicamente para as soberanias dos Estados; por último, a guerra como "em-si-e-para-si" a guerra cosmopolita como aquilo que define a soberania, ao mesmo tempo em que define o excesso fora-da-lei do soberano global.

Mas não é possível também ver no processo histórico de formação das prisões uma mesma tríade hegeliana? Se bem que a prisão é uma necessidade para a fábrica é possível ver, em primeiro lugar o encarceiramento do exército de reserva como uma necessidade "em si", uma vez que o processo incipiente de acumulação do capital precisava de trabalhadores já disciplinados. Em segundo lugar, a prisão como um "para si", com o crescimento do desemprego estrutural, a prisão se torna o depósito daqueles não-integráveis no processo produtivo. Sua necessidade de disciplinarização da pobreza (na medida em que a fábrica não mais necessida dos já-disciplinados) é secundária a si mesma. Por último, no estádio final do capitalismo financeiro, a prisão como necessidade em-si-e-para-si: agora, a prisão é em si mesmo rentável. Não é por outra razão que as "Correction Companies" americanas estão entre os mais rentáveis negócios geradores de lucro do mercado financeiro ianque.

O que os pais da teoria Agnóstica não se preocuparam em ver, é que a própria dicotomia barretiana guerra e pena se põe como os dois primeiros momentos de uma tríade hegeliana, quanto à configuração do Estado de Exceção: enquanto a guerra, nos princípios modernos do equilíbrio e da união pacífica, era "externa à soberania" ela era para a soberania. Enquanto a pena, representava a própria soberania em si, uma vez que o conceito de Schimitt não deixa dúvidas: "soberano é aquele que decide sobre a exceção", ou seja sobre a punição de seus cidadãos. O atual estádio do desenvolvimento do Capital ao mesmo tempo que não mais distingue entre guerra e paz, economia de guerra e economia de paz, encarceiramento produtivo/lucrativo, encarceiramento improdutivo/não-lucrativo, também não mais distingue sobre a própria diferença entre guerra e punição. Na atual indistinção entre os termos guerra e pena a frase de Tobias Barreto completa sua professia: finalmente guerra e pena são definitivamente uma única e mesma coisa, indistinguíveis como sói a acontecer com toda síntese hegeliana de termos antitéticos.

Como tal ambos são apenas dois pontos de vista complementares (ou paraláticos, para citar Zizek) de um mesmo objeto: a dimensão pulsional do capital que exige o excesso (a desterritorialização) para decidir sobre a normalidade (a territorialização). E neste processo, é uma pena que o mercado financeiro, flexível, flutuante, etc., necessite da criminalização de alguns traders burgueses (imorais e criminosos) para normalizar sua circuação.


domingo, 2 de maio de 2010

Fiel à Cuba, contra o stalino-trotskismo.

É possível identificar claramente o que significa a postura de um troskismo mal-digerido e como Trotsky e Stalin podem parecer dois lados de uma mesma moeda, chegando as vezes a parecerem uma única e mesma pessoa sofrendo de esquizofrenia crônica. Que assim seja vemos na argumentação anti-castrista de nossos camaradas do PSTU quando do evento da morte do senhor Orlando Zapata.

O que une os dois, os gêmeos Trotsky-Stalin, é o próprio significante "Traição". Enquanto a postura stalinista básica é julgar aqueles que, não aceitando a visão "objetiva" que a cúpula do partido dava sobre a realidade, e não se engajando na "razão histórica universal" (Tal como anunciava o PC da URSS) são considerados prontamente como traidores. Os expurgos stalinistas são assim o exemplo típico de Carnaval: os papéis são subitamente invertidos por uma suspensão da ordem posta pela própria ordem: quem ontem era membro da cúpula do partido, hoje é julgado e condenado, amanhã é expulso, etc.

Tudo isto pela mobilização do significante "Traição" que, sob a visão stalinista, era traição não exatamente ao partido, mas à razão histórica universal (cuja lógica era pretensamente acessível somente a Stalin e seus amigos menscheviks da burocracia econômica).

Ora, que é o trotskismo mal-digerido de que falei senão a postura simetricamente oposta? Aquela que vê traição em tudo, que se sente traída em tudo? Ou seja, de outro lado quando posto a julgamento, quando questionado quanto aos princípios pelos quais está lutando, o “trotskismo” [enfatizando as aspas por justiça à pessoa de Leon Trotsky] prontamente julga como traidor agora quem dirige os rumos da revolução. Não é a toa que por vezes os papéis assim concebidos de Trotsky e Stalin se invertam.

Que está em jogo, por exemplo, quando os camaradas do PSTU sustentam e reforçam a idéia de que o regime cubano "Traiu a revolução", pondo toda a política castrista no banco dos réus? Que é isto senão uma postura analogamente carnavalesca da esquerda que suspende sua idenficação com a própria esquerda para gerar um efeito de “ser mais de esquerda do que a esquerda”?

O que fica mais evidente é como o significante "socialismo" é manejado de forma bastante dúbia. Em primeiro lugar é evocado claramente que o que há em Cuba não é socialismo. Ótimo, mas então que é socialismo? Não é exatamente este trotskismo que rejeita absolutamente qualquer experiência real de estado revolucionário em nome deste ‘socialismo-que-nunca-é’? Mas como é o nome da atitude racional que “salva” um princípio de pureza de toda “contaminação tóxica” encontrada na realidade empírica? Resposta: idealismo metafísico.

Ressalto: idealismo metafísico porque sequer o idealismo hegeliano seria capaz de argumentar desta forma. É do próprio Hegel a noção de que uma “boa idéia” que não se aplica à realidade é, na verdade, uma má idéia, uma idéia ruim ou mal acabada. O que está em jogo, portanto, na argumentação do PSTU é a salvaguarda de um “socialismo” metafísico-transcendental que se sustenta numa postura de crítica histérica de demandas impossíveis contra as experiências reais. O que acontece é uma lógica perversa, no pensamento, que acaba resultando no extremo oposto daquilo que os próprios camaradas do PSTU tentam defender: o transcendental-socialismo dos nossos camaradas acaba tendo por determinação própria, quer dizer, acaba requerendo por sua própria lógica interna, a crítica histérica contra os regimes socialistas reais. Em outras palavras: o ideal de socialismo, o transcendental-socialismo é o produto (e não a fonte) da crítica indiscriminada contra toda e qualquer experiência real de socialismo e, o que é mais importante, é concebido como um ideal puro e não como um processo de sua própria realização.

Aqui, no ideal de pureza socialista, é notável como mais uma vez Trotsky e Stalin se tornam uma única e mesma coisa. Em suma, o que é comum aos dois não é só o significante “traição”, mas este significante mobilizado em sua articulação com o transcendental-socialismo. Trotsky e Stalin são, neste sentido, duas visões suplementares e indissociáveis que divergem no ponto específico em que se procura encontrar ‘onde está a traição ao transcendental-socialismo’. Mas esta traição, em si, não é questionada. O transcendental-socialismo e o perigo de sua traição permanecem tal e qual tanto no stalinismo quanto no trotskismo. Para ambos a análise empírica da realidade poderia se resumir no seguinte axioma: se há socialismo real há traição. Neste sentido vemos uma simbiose muito estranha entre uma certa apropriação de Trotsky e o fukuyamismo da esquerda que prega o fim da história.

Toda revolução real, deve ser concebida como o processo de lidar com os antagonismos reais existentes a partir da mobilização de militantes castrados (ou militantes-mutilantes) quanto ao ideal revolucionário que põem para si mesmo. Toda revolução real é um processo em que um número virtualmente infinito de pessoas se mantém fiel a um ideal revolucionário que lhes exige castração, sacrifício, disciplina e vigilância. O parâmetro para nossos julgamentos deixa de ser, assim, o transcendental-socialismo stalino-trotskista e passa a ser o processo real e vigente de construção do socialismo na medida em que o poder instituído consegue com maior ou menor sucesso, mobilizar o maior número de militantes nesta fidelidade à castração, fidelidade esta que empresta seu nome, em Cuba, ao próprio líder e comandante-em-chefe da revolução cubana, Fidel Castro.

A fidelidade à castração de Fidel Castro é, assim concebida, um processo de resistência socialista contraditório e antagônico sim, é verdade, mas que também não permite que nós, socialistas latino-americanos, encaremos o regime cubano como o inimigo. Nisto, encontraríamos vários "aliados" na corja liberal-tolerante da democracia-por-vir. Estes são nossos inimigos. Estes não são fiéis à castração que seus próprios ideais políticos fizeram emergir historicamente com as figuras memoráveis de seus heróis. (Ao contrário eles guilhotinaram os últimos revolucionários fiéis à revolução francesa: Robespierre e Saint-Just). Estes são nossos inimigos comuns. Estes nos definem como esquerda, por servirem de modelo de como não ser. E contra eles, sou fielmente castrista!