É conhecido o argumento de Ulrich Beck de como as relações sociais, as formas de organização política e a instabilidade da economia e da sociedade teriam contribuído para uma certa "brazileirização do mundo" na medida em que o risco, a incerteza e a impossibilidade de ações políticas previsíveis e efetivas teriam se globalizado.
Safatle em seu "Cinismo e Falência da Crítica" aponta como a ordem do consumo pós-moderna está apoiada no desaparecimento da figura paterna e o surgimento de um Superego Materno que não mais ordena o ascetismo, mas o gozo! O Gozo do consumo, ligado à "administração da insatisfação" que permite, ou antes ordena, a todos que transgridam constantemente as normas, incorporem novas formas de subjetividade, erotizem a vida da forma mais criativa possível. A culpa hoje está relacionada não mais em desejar ou realizar algo reprimido... mas antes em não conseguir realizá-lo plenamente como nos ordena essa nova forma de superego.
E já que falamos em superego materno, a antropóloga Rita Laura Segato em seu Édipo Brasileiro: dupla negação de gênero e raça demonstra como historicamente a família brasileira é composta por duas figuras maternas: a mãe biológica/legítima e a ama-de-leite que, nas origens do país, estava identificada com as escravas negras que atuavam no trabalho doméstico, dentro da casa grande, cuidando dos filhos dos grandes senhores. Com o tempo a figura da ama-de-leite começou a surgir também em famílias emergentes que não eram necessariamente donas de engenhos ou grandes latifúndios até se popularizar entre as classes média e surgir também, sob outras formas, nas classes mais pobres.
Este processo histórico é bastante complexo, alterando-se progressivamente inclusive a imagem desta ama-de-leite que passa, paulatinamente, a não mais amamentar os filhos das senhoras brancas, tornando-se as babás de hoje. O que importa, entretanto, é demonstrar como a formação cultural do brasileiro impõe uma figura materna duplicada: a da mãe negra (que tende a ser recalcada na formação psíquica da criança) e a da mãe branca (a única que pode ser reconhecida como mãe legítima pela criança).
O interessante é notar que esta mãe branca é que exerce, em relação à mãe negra, a função paterna - e é Safatle, com Lacan, que salienta que, se decai a figura paterna nos tempos de hoje, isso não quer dizer, em absoluto, que a função paterna também já não exista: ela é perfeitamente exercida pelo Superego Materno - na medida em que é ela a responsável em separar seu filho da ama-de-leite ou da babá de forma drástica e radical devendo esta última, de preferência, ser esquecida, jogada para "a outra cena" do aparelho psíquico.
Rita Laura Segato comenta ainda que este processo, embora muito retratado na literatura brasileira, aparece muito pouco nos estudos acadêmicos, de forma que não se analiza esta constituição de suma importância de um registro psicanalítico e antropológico da formação cultural brasileira. Entretanto existe um interessante registro deste fenômeno nas religiões afro-brasileiras.
Yemanjá, é considerada no candomblé, a mãe de todos os orixás, a representante das águas do mar. Oxum, por sua vez, é a mãe de criação, ou ama-de-leite dos orixás, representando a água doce dos rios e lagos.
Yemanjá é a deusa da falsa ternura, da profundidade obscena dos oceanos, traiçoeira e pouco confiável, enquanto Oxum representa a ternura verdadeira, o carinho, a maternidade e a douçura. Segundo Segato, nas culturas afro-brasileiras as simpatias caem quase sempre ao lado de Oxum e não de Yemanjá.
Yemanjá, por sua vez, tinha dois filhos: Ogum e Xangô. O primeiro, disciplinado, honesto e trabalhador; o segundo, trapaceiro, indisciplinado e rebelde. Reza a lenda que no dia da coroação de Ogum, Xangô coloca sonífero no café do irmão - o café aparecendo em lendas religiosas em vez do vinho é motivo de orgulho! - para que Ogum adormeça e Xangô, disfarçado, seja coroado em seu lugar.
E assim aconteceu: Xangô foi coroado no lugar do irmão pela mãe. Interessante é que, segundo a lenda, Yemanjá sabia que quem estava sendo coroado não era Ogum, mas o rebelde e traidor Xangô. Entretanto, para Yemanjá era mais interessante manter a ordem do reinado, ainda que coroasse o rei errado e de maneira injusta, do que deixar o reinado sem rei.
Se, entretanto, entre Oxum e Yemanjá as simpatias caem do lado de Oxum, a mãe de criação, em relação aos irmãos Ogum e Xangô, as simpatias caem do lado de Xangô, o rebelde e trapaceiro que, segundo Segato, talvez seja um registro cultural de um povo forçadamente lançado às margens da ilegalidade, aprendendo a viver, ou antes tendo sua imagem construída, como desrespeitosos transgressores da lei.
Não será este exatamente o sentido do Superego Materno Pós-Moderno: uma instância que sustenta um reinado de transgressões, desordem, prazeres, múltiplas identidades, festas e carnavais, mas que esconde uma obscena rigidez que prefere a ordem à justiça? E se estamos realmente passando por um processo de "brasileirização do mundo" é antes por estarmos "exportando" esta forma obscena de injunção superegóica ao gozo, do que nosso 'gingado' ou 'malandragem' tropicais louvados por Caetano, Gil e outros tropicalistas, mas completamente dessubstancializado, esvaziado desta obscenidade oceânica.
Safatle em seu "Cinismo e Falência da Crítica" aponta como a ordem do consumo pós-moderna está apoiada no desaparecimento da figura paterna e o surgimento de um Superego Materno que não mais ordena o ascetismo, mas o gozo! O Gozo do consumo, ligado à "administração da insatisfação" que permite, ou antes ordena, a todos que transgridam constantemente as normas, incorporem novas formas de subjetividade, erotizem a vida da forma mais criativa possível. A culpa hoje está relacionada não mais em desejar ou realizar algo reprimido... mas antes em não conseguir realizá-lo plenamente como nos ordena essa nova forma de superego.
E já que falamos em superego materno, a antropóloga Rita Laura Segato em seu Édipo Brasileiro: dupla negação de gênero e raça demonstra como historicamente a família brasileira é composta por duas figuras maternas: a mãe biológica/legítima e a ama-de-leite que, nas origens do país, estava identificada com as escravas negras que atuavam no trabalho doméstico, dentro da casa grande, cuidando dos filhos dos grandes senhores. Com o tempo a figura da ama-de-leite começou a surgir também em famílias emergentes que não eram necessariamente donas de engenhos ou grandes latifúndios até se popularizar entre as classes média e surgir também, sob outras formas, nas classes mais pobres.
Este processo histórico é bastante complexo, alterando-se progressivamente inclusive a imagem desta ama-de-leite que passa, paulatinamente, a não mais amamentar os filhos das senhoras brancas, tornando-se as babás de hoje. O que importa, entretanto, é demonstrar como a formação cultural do brasileiro impõe uma figura materna duplicada: a da mãe negra (que tende a ser recalcada na formação psíquica da criança) e a da mãe branca (a única que pode ser reconhecida como mãe legítima pela criança).
O interessante é notar que esta mãe branca é que exerce, em relação à mãe negra, a função paterna - e é Safatle, com Lacan, que salienta que, se decai a figura paterna nos tempos de hoje, isso não quer dizer, em absoluto, que a função paterna também já não exista: ela é perfeitamente exercida pelo Superego Materno - na medida em que é ela a responsável em separar seu filho da ama-de-leite ou da babá de forma drástica e radical devendo esta última, de preferência, ser esquecida, jogada para "a outra cena" do aparelho psíquico.
Rita Laura Segato comenta ainda que este processo, embora muito retratado na literatura brasileira, aparece muito pouco nos estudos acadêmicos, de forma que não se analiza esta constituição de suma importância de um registro psicanalítico e antropológico da formação cultural brasileira. Entretanto existe um interessante registro deste fenômeno nas religiões afro-brasileiras.
Yemanjá, é considerada no candomblé, a mãe de todos os orixás, a representante das águas do mar. Oxum, por sua vez, é a mãe de criação, ou ama-de-leite dos orixás, representando a água doce dos rios e lagos.
Yemanjá é a deusa da falsa ternura, da profundidade obscena dos oceanos, traiçoeira e pouco confiável, enquanto Oxum representa a ternura verdadeira, o carinho, a maternidade e a douçura. Segundo Segato, nas culturas afro-brasileiras as simpatias caem quase sempre ao lado de Oxum e não de Yemanjá.
Yemanjá, por sua vez, tinha dois filhos: Ogum e Xangô. O primeiro, disciplinado, honesto e trabalhador; o segundo, trapaceiro, indisciplinado e rebelde. Reza a lenda que no dia da coroação de Ogum, Xangô coloca sonífero no café do irmão - o café aparecendo em lendas religiosas em vez do vinho é motivo de orgulho! - para que Ogum adormeça e Xangô, disfarçado, seja coroado em seu lugar.
E assim aconteceu: Xangô foi coroado no lugar do irmão pela mãe. Interessante é que, segundo a lenda, Yemanjá sabia que quem estava sendo coroado não era Ogum, mas o rebelde e traidor Xangô. Entretanto, para Yemanjá era mais interessante manter a ordem do reinado, ainda que coroasse o rei errado e de maneira injusta, do que deixar o reinado sem rei.
Se, entretanto, entre Oxum e Yemanjá as simpatias caem do lado de Oxum, a mãe de criação, em relação aos irmãos Ogum e Xangô, as simpatias caem do lado de Xangô, o rebelde e trapaceiro que, segundo Segato, talvez seja um registro cultural de um povo forçadamente lançado às margens da ilegalidade, aprendendo a viver, ou antes tendo sua imagem construída, como desrespeitosos transgressores da lei.
Não será este exatamente o sentido do Superego Materno Pós-Moderno: uma instância que sustenta um reinado de transgressões, desordem, prazeres, múltiplas identidades, festas e carnavais, mas que esconde uma obscena rigidez que prefere a ordem à justiça? E se estamos realmente passando por um processo de "brasileirização do mundo" é antes por estarmos "exportando" esta forma obscena de injunção superegóica ao gozo, do que nosso 'gingado' ou 'malandragem' tropicais louvados por Caetano, Gil e outros tropicalistas, mas completamente dessubstancializado, esvaziado desta obscenidade oceânica.
2 comentários:
É uma hipótese muito boa e poeticamente muito rica. Você fez o link mais certeiro entre a antropologia psicanalítica da Segato e a sociologia reflexiva do Beck! Vale a pena explorar, só penso que a palavra exportar não é rigorosamente correta. Porque brasilianização não me parece exportação, não há relação de causa entre a cultura daqui e a sua mimetização no mundo todo. Ao menos porque falta o protagonismo brasileiro para definir uma nova cara do mundo. O que se pode trabalhar a partir disso: por que o Brasil se adiantou ao mundo, tendo o mundo chegado na mesma posição por outras vias? O que permitiu essa vanguarda brasileira? Há algo em comum que tornou o Brasil brasilianista assim como, mais tarde, tornou o mundo brasilianista? Ou há uma concorrência de fatores heterogêneos que determinaram este passo na história?
Belo insight!
Muito obrigado! E acho que vc tem toda razão! Realmente a palavra exportar passou essa idéia e de forma nenhuma há essa causalidade mesmo. Senão que é mais fácil pensar que "brasilianização do mundo" é mais uma apropriação do significado "brasil" pela ideologia contemporânea do que algo genuinamente oriundo do Brasil! É a apropriação de um significado de Brasil que já foi construído por não-brasileiros.
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