domingo, 31 de maio de 2009

Elogio à Verdade!

O último livro de Slavoj Zizek e John Milbank, publicado neste ano de 2009, chamado The Monstrosity of Christ [A monstruosidade de Cristo], está inaugurando um novo tema de discussão da filosofia honestamente crítica de hoje: aquela ligada ao edifício teórico marxista sem a necessidade de 'ter de admitir que a luta acabou', como soi acontecer neste esquerda apática que olha diante das catástrofes sociais, ambientais e políticas com cara de "pintura barroca".

Creston Davis, que escreve a introdução do livro, é enfático: hoje, Hegel foi subitamente excluído das discussões políticas, filosóficas e acadêmicas por ser de pronto criticado por sua "pretensão à verdade" e seu pensamento "totalitário", sendo amplamente defendida a ingênua idéia de que micro lutas ridículas dentro de sua especifidade autista são mais do que suficientes para conquistar a emancipação humana ou para derrotar o capitalismo. Ninguém se preocupa em denominadores comuns e em combater o capital global e sua verdade democrática também em termos de Verdade. As únicas verdades que imperam são a verdade pulsional do capitalismo e seus imperativos existenciais, para citar Fernando Marcellino, e a verdade cínica da Democracia que sabe ela própria que não funciona, mas... nos abre sempre um sorriso diante das contradições auto-resolvidas de seu sistema político.

O que este recalque de Hegel impõe é uma preguiça intelectual de tentar responder à pergunta mais básica da filosofia: não "existe ou não a verdade?", mas sim "o que queremos dizer quando pronunciamos a palavra Verdade?". Dessa preguiça intelectual é que decorrem as mais ridículas críticas a Hegel: "um serzinho que teve a pretensão de achar que pode conhecer o Universo em seu caráter absoluto"; "um intelectual totalitário que pensa que pode montar um sistema mais completo do que os outros sistemas de outros intelectuais que nas suas singularidades são tão importantes para o pensamento quanto ele"; sem falar nas inúmeras críticas a Hegel que miram somente em suas concepções específicas de Direito, Estado, Sociedade Civil, mas que em nada põem em cheque o projeto de seu sistema.

Todas estas críticas excluem as principais intuições de Hegel: em primeiro lugar não existe o Absoluto como os críticos mais apressados costumam apontar: o absoluto não é a reconciliação das oposições, o absoluto é a oposição mais radical de todas, elevada às útlimas consequências, donde se descobre que as oposições fixadas pelo entendimento não são independentes, mas que uma está contida na outra, já na idéia. Não que Estado seja a idéia perfeita de um Estado harmônico conciliador dos interesses da sociedade civil e as aplicações concretas da idéia de Estado, os Estados concretos sejam o antagonismo concreto que impossibilita a idéia, mas, ao contrário, é a idéia de Estado que é a contradição absoluta enquanto as tentativas concretas de aplicá-la é que são sempre fracassadas tentativas de tentar resolver a contradição última.

Em segundo lugar, síntese é antítese em seu estado puro! O que ocorre na passagem de uma para outra é uma mudança mínima em que se percebe que a síntese já é a antítese, na medida em que é a antítese a verdadeira forma da Tese, que é a Idéia e que, portanto, contém em si uma ruptura que a impossibilita de totalizar-se: o absoluto é sempre outro para ele mesmo, e não só para nós, humanos conscientes. Esta passagem é que permite ao Espírito Subjetivo retirar-se da determinação do Espírito Objetivo no aspecto ilusório em que se apresenta, como reificado, para que ele (Espírito Subjetivo) perceba que é possível a concepção de outro espaço em que se dará o desenvolvimento do Entendimento, em que não faça mais sentido a oposição anteriormente dada sob a forma de Tese-Antítese, como se fossem duas coisas independentes e mutuamente excludentes.

O que é relevante nesta segunda idéia é que a síntese é o processo da contingência, da criação de um ato ou Evento que somente retrospectivamente é que criará a necessidade de seu surgimento, suas condições ou pressupostos. A dialética hegeliana é retrospectiva. Esta é a dialética da necessidade e da contingência e, sendo que em termos hegelianos é sempre necessária a discussão a respeito de qual dos campos opostos (no caso necessidade vs contingência) é o domínio inconsistente em si que se exterioriza na forma da oposição, nesse caso o domínio é sempre a contingência. Como pergunta Zizek: "mas a dialética em si, não é necessária?": sim, mas somente enquanto esta necessidade é criada retrospectivamente em vista da pura contingência da emergência de um ato ou acontecimento impulsionado pelo Espírito, sendo esse Espírito aquele aspecto do homem que não se reduz a sua natureza nem tampouco a suas determinações sócio-culturais. Algo que sempre escapa a elas, um "a mais" do homem, o que Lacan chamaria de objeto pequeno a.

O que temos neste vislumbre extremamente conciso da dialética hegeliana (tão conciso que quase chega ao ponto do ridículo) é precisamente que Hegel não constituiu um sistema Total. Ao contrário, é mais fácil pensar o sistema hegeliano como um não-todo. Não um "tudo é explicado pela razão", mas um "nem tudo é explicado pela razão", não no sentido de que algo do mundo natural ou cultural seja irracional, mas no sentido de que é a totalidade da razão e da causalidade é que são inconsistentes em si, e esta perspectiva é o que permite a aparência de surpresas e de milagres, e só com Hegel (e diria ainda, com o materialismo marxista posterior) é que podemos confrontar-nos racionalmente com esses milagres, como pontos de desafio à própria razão, posta em movimento pelo movimento de retirada do Espírito para si próprio (Aufhebung).

O que vemos aqui é como Hegel trás a negatividade para dentro do sistema. E Creston Davis está correto em afirmar que Hegel, de todos os grandes pensadores modernos, foi o primeiro a pensar um sistema racional que permite arriscar seus próprios pressupostos. A Verdade, portanto, é método, é negatividade e é fluxo. Donde não é possível pensar nada para além, nada excluído deste não-todo que é abertura. O que é que nega a dialética sem ser já encarnado no seu fluxo de negatividades?

Este sentido da Verdade como movimento e fluxo é que deve ser o sentido da Verdade como Universalidade ofensiva contra a conclamada aporia do sistema econômico capitalista. Dialética como Verdade é, nada mais nada menos, do que a "tática de guerrilha do pensamento"!

4 comentários:

Unknown disse...

Crysantho,
Antes mesmo de terminar a leitura do seu post, não tinha dúvidas de que tinha sido escrito por você. Apesar de convivermos há pouco tempo, a escrita e a fala lhe são muito peculiar.
Comparto da angústia de ser utópico em tempos tecnicistas e achei o blog muito legal. Parabéns.
Abraço

Caio

Fernando Marcellino disse...

Não me parece que faltou algo. Se é possível um elogio a Verdade, por que não pensemos um elogio a Alternativa como Verdade?

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

Po, Caio, valeu mesmo!
Parece realmente que ser utópico na idade da técnica se torna cada vez mais transgressor mesmo! Por isso mesmo a nossa tarefa, né?

Chrysantho Sholl Figueiredo disse...

Zen, só tenho um problema com o termo "Alternativa"... concordo com a idéia, mas acredito que esse nome é problemático em primeiro lugar pq pressupõe duas opções igualmente válidas, em segundo lugar pq vivemos os tempos da "democracia alternativa" da "sociedade alternativa" do "capitalismo alternativo" etc.
penso que talvez pensar em "Oposição como Verdade" tenha mais a ver com o hegelianismo e seja mais contundente num tempo em que a oposição se tornou uma mentira, como o PSDB, por exemplo!