domingo, 31 de maio de 2009

Elogio à Verdade!

O último livro de Slavoj Zizek e John Milbank, publicado neste ano de 2009, chamado The Monstrosity of Christ [A monstruosidade de Cristo], está inaugurando um novo tema de discussão da filosofia honestamente crítica de hoje: aquela ligada ao edifício teórico marxista sem a necessidade de 'ter de admitir que a luta acabou', como soi acontecer neste esquerda apática que olha diante das catástrofes sociais, ambientais e políticas com cara de "pintura barroca".

Creston Davis, que escreve a introdução do livro, é enfático: hoje, Hegel foi subitamente excluído das discussões políticas, filosóficas e acadêmicas por ser de pronto criticado por sua "pretensão à verdade" e seu pensamento "totalitário", sendo amplamente defendida a ingênua idéia de que micro lutas ridículas dentro de sua especifidade autista são mais do que suficientes para conquistar a emancipação humana ou para derrotar o capitalismo. Ninguém se preocupa em denominadores comuns e em combater o capital global e sua verdade democrática também em termos de Verdade. As únicas verdades que imperam são a verdade pulsional do capitalismo e seus imperativos existenciais, para citar Fernando Marcellino, e a verdade cínica da Democracia que sabe ela própria que não funciona, mas... nos abre sempre um sorriso diante das contradições auto-resolvidas de seu sistema político.

O que este recalque de Hegel impõe é uma preguiça intelectual de tentar responder à pergunta mais básica da filosofia: não "existe ou não a verdade?", mas sim "o que queremos dizer quando pronunciamos a palavra Verdade?". Dessa preguiça intelectual é que decorrem as mais ridículas críticas a Hegel: "um serzinho que teve a pretensão de achar que pode conhecer o Universo em seu caráter absoluto"; "um intelectual totalitário que pensa que pode montar um sistema mais completo do que os outros sistemas de outros intelectuais que nas suas singularidades são tão importantes para o pensamento quanto ele"; sem falar nas inúmeras críticas a Hegel que miram somente em suas concepções específicas de Direito, Estado, Sociedade Civil, mas que em nada põem em cheque o projeto de seu sistema.

Todas estas críticas excluem as principais intuições de Hegel: em primeiro lugar não existe o Absoluto como os críticos mais apressados costumam apontar: o absoluto não é a reconciliação das oposições, o absoluto é a oposição mais radical de todas, elevada às útlimas consequências, donde se descobre que as oposições fixadas pelo entendimento não são independentes, mas que uma está contida na outra, já na idéia. Não que Estado seja a idéia perfeita de um Estado harmônico conciliador dos interesses da sociedade civil e as aplicações concretas da idéia de Estado, os Estados concretos sejam o antagonismo concreto que impossibilita a idéia, mas, ao contrário, é a idéia de Estado que é a contradição absoluta enquanto as tentativas concretas de aplicá-la é que são sempre fracassadas tentativas de tentar resolver a contradição última.

Em segundo lugar, síntese é antítese em seu estado puro! O que ocorre na passagem de uma para outra é uma mudança mínima em que se percebe que a síntese já é a antítese, na medida em que é a antítese a verdadeira forma da Tese, que é a Idéia e que, portanto, contém em si uma ruptura que a impossibilita de totalizar-se: o absoluto é sempre outro para ele mesmo, e não só para nós, humanos conscientes. Esta passagem é que permite ao Espírito Subjetivo retirar-se da determinação do Espírito Objetivo no aspecto ilusório em que se apresenta, como reificado, para que ele (Espírito Subjetivo) perceba que é possível a concepção de outro espaço em que se dará o desenvolvimento do Entendimento, em que não faça mais sentido a oposição anteriormente dada sob a forma de Tese-Antítese, como se fossem duas coisas independentes e mutuamente excludentes.

O que é relevante nesta segunda idéia é que a síntese é o processo da contingência, da criação de um ato ou Evento que somente retrospectivamente é que criará a necessidade de seu surgimento, suas condições ou pressupostos. A dialética hegeliana é retrospectiva. Esta é a dialética da necessidade e da contingência e, sendo que em termos hegelianos é sempre necessária a discussão a respeito de qual dos campos opostos (no caso necessidade vs contingência) é o domínio inconsistente em si que se exterioriza na forma da oposição, nesse caso o domínio é sempre a contingência. Como pergunta Zizek: "mas a dialética em si, não é necessária?": sim, mas somente enquanto esta necessidade é criada retrospectivamente em vista da pura contingência da emergência de um ato ou acontecimento impulsionado pelo Espírito, sendo esse Espírito aquele aspecto do homem que não se reduz a sua natureza nem tampouco a suas determinações sócio-culturais. Algo que sempre escapa a elas, um "a mais" do homem, o que Lacan chamaria de objeto pequeno a.

O que temos neste vislumbre extremamente conciso da dialética hegeliana (tão conciso que quase chega ao ponto do ridículo) é precisamente que Hegel não constituiu um sistema Total. Ao contrário, é mais fácil pensar o sistema hegeliano como um não-todo. Não um "tudo é explicado pela razão", mas um "nem tudo é explicado pela razão", não no sentido de que algo do mundo natural ou cultural seja irracional, mas no sentido de que é a totalidade da razão e da causalidade é que são inconsistentes em si, e esta perspectiva é o que permite a aparência de surpresas e de milagres, e só com Hegel (e diria ainda, com o materialismo marxista posterior) é que podemos confrontar-nos racionalmente com esses milagres, como pontos de desafio à própria razão, posta em movimento pelo movimento de retirada do Espírito para si próprio (Aufhebung).

O que vemos aqui é como Hegel trás a negatividade para dentro do sistema. E Creston Davis está correto em afirmar que Hegel, de todos os grandes pensadores modernos, foi o primeiro a pensar um sistema racional que permite arriscar seus próprios pressupostos. A Verdade, portanto, é método, é negatividade e é fluxo. Donde não é possível pensar nada para além, nada excluído deste não-todo que é abertura. O que é que nega a dialética sem ser já encarnado no seu fluxo de negatividades?

Este sentido da Verdade como movimento e fluxo é que deve ser o sentido da Verdade como Universalidade ofensiva contra a conclamada aporia do sistema econômico capitalista. Dialética como Verdade é, nada mais nada menos, do que a "tática de guerrilha do pensamento"!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Uma outra brasileirização do mundo? (Ulrich Beck: filho de Yemanjá).

É conhecido o argumento de Ulrich Beck de como as relações sociais, as formas de organização política e a instabilidade da economia e da sociedade teriam contribuído para uma certa "brazileirização do mundo" na medida em que o risco, a incerteza e a impossibilidade de ações políticas previsíveis e efetivas teriam se globalizado.

Safatle em seu "Cinismo e Falência da Crítica" aponta como a ordem do consumo pós-moderna está apoiada no desaparecimento da figura paterna e o surgimento de um Superego Materno que não mais ordena o ascetismo, mas o gozo! O Gozo do consumo, ligado à "administração da insatisfação" que permite, ou antes ordena, a todos que transgridam constantemente as normas, incorporem novas formas de subjetividade, erotizem a vida da forma mais criativa possível. A culpa hoje está relacionada não mais em desejar ou realizar algo reprimido... mas antes em não conseguir realizá-lo plenamente como nos ordena essa nova forma de superego.

E já que falamos em superego materno, a antropóloga Rita Laura Segato em seu Édipo Brasileiro: dupla negação de gênero e raça demonstra como historicamente a família brasileira é composta por duas figuras maternas: a mãe biológica/legítima e a ama-de-leite que, nas origens do país, estava identificada com as escravas negras que atuavam no trabalho doméstico, dentro da casa grande, cuidando dos filhos dos grandes senhores. Com o tempo a figura da ama-de-leite começou a surgir também em famílias emergentes que não eram necessariamente donas de engenhos ou grandes latifúndios até se popularizar entre as classes média e surgir também, sob outras formas, nas classes mais pobres.

Este processo histórico é bastante complexo, alterando-se progressivamente inclusive a imagem desta ama-de-leite que passa, paulatinamente, a não mais amamentar os filhos das senhoras brancas, tornando-se as babás de hoje. O que importa, entretanto, é demonstrar como a formação cultural do brasileiro impõe uma figura materna duplicada: a da mãe negra (que tende a ser recalcada na formação psíquica da criança) e a da mãe branca (a única que pode ser reconhecida como mãe legítima pela criança).

O interessante é notar que esta mãe branca é que exerce, em relação à mãe negra, a função paterna - e é Safatle, com Lacan, que salienta que, se decai a figura paterna nos tempos de hoje, isso não quer dizer, em absoluto, que a função paterna também já não exista: ela é perfeitamente exercida pelo Superego Materno - na medida em que é ela a responsável em separar seu filho da ama-de-leite ou da babá de forma drástica e radical devendo esta última, de preferência, ser esquecida, jogada para "a outra cena" do aparelho psíquico.

Rita Laura Segato comenta ainda que este processo, embora muito retratado na literatura brasileira, aparece muito pouco nos estudos acadêmicos, de forma que não se analiza esta constituição de suma importância de um registro psicanalítico e antropológico da formação cultural brasileira. Entretanto existe um interessante registro deste fenômeno nas religiões afro-brasileiras.

Yemanjá, é considerada no candomblé, a mãe de todos os orixás, a representante das águas do mar. Oxum, por sua vez, é a mãe de criação, ou ama-de-leite dos orixás, representando a água doce dos rios e lagos.
Yemanjá é a deusa da falsa ternura, da profundidade obscena dos oceanos, traiçoeira e pouco confiável, enquanto Oxum representa a ternura verdadeira, o carinho, a maternidade e a douçura. Segundo Segato, nas culturas afro-brasileiras as simpatias caem quase sempre ao lado de Oxum e não de Yemanjá.

Yemanjá, por sua vez, tinha dois filhos: Ogum e Xangô. O primeiro, disciplinado, honesto e trabalhador; o segundo, trapaceiro, indisciplinado e rebelde. Reza a lenda que no dia da coroação de Ogum, Xangô coloca sonífero no café do irmão - o café aparecendo em lendas religiosas em vez do vinho é motivo de orgulho! - para que Ogum adormeça e Xangô, disfarçado, seja coroado em seu lugar.

E assim aconteceu: Xangô foi coroado no lugar do irmão pela mãe. Interessante é que, segundo a lenda, Yemanjá sabia que quem estava sendo coroado não era Ogum, mas o rebelde e traidor Xangô. Entretanto, para Yemanjá era mais interessante manter a ordem do reinado, ainda que coroasse o rei errado e de maneira injusta, do que deixar o reinado sem rei.

Se, entretanto, entre Oxum e Yemanjá as simpatias caem do lado de Oxum, a mãe de criação, em relação aos irmãos Ogum e Xangô, as simpatias caem do lado de Xangô, o rebelde e trapaceiro que, segundo Segato, talvez seja um registro cultural de um povo forçadamente lançado às margens da ilegalidade, aprendendo a viver, ou antes tendo sua imagem construída, como desrespeitosos transgressores da lei.

Não será este exatamente o sentido do Superego Materno Pós-Moderno: uma instância que sustenta um reinado de transgressões, desordem, prazeres, múltiplas identidades, festas e carnavais, mas que esconde uma obscena rigidez que prefere a ordem à justiça? E se estamos realmente passando por um processo de "brasileirização do mundo" é antes por estarmos "exportando" esta forma obscena de injunção superegóica ao gozo, do que nosso 'gingado' ou 'malandragem' tropicais louvados por Caetano, Gil e outros tropicalistas, mas completamente dessubstancializado, esvaziado desta obscenidade oceânica.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Primeira consequência decorrente do nosso conceito de pós-modernidade.

Encontrada em Kierkegaard, eu seu Papers and Journals.

To me the difference between a writer who picks up his material from everywherer but doesn't work it into an organic whole and a writer who does is like that between mock turtle and real turtle. The meat of the real turtle tastes in some places like veal, in others like chicken, but all of it has been combined in one organism. You find all these different kinds of meat in mock turtle but what binds the separate parts is a sauce, which even so is often more sustaining than the jabber which stands in for it in much writing. (22 november 34 I A 32).

[Tradução livre: "Para mim a diference entre um escritor que retira suas fontes de toda parte mas não se empenha em torná-las um todo organico e um escritor que o faz é como aquela entre uma 'mock turtle' [uma imitação de tartaruga] e uma tartaruga de verdade. A carna da tartaruga de verdade em algumas partes tem sabor de vitela, em outras de frango, mas tudo isso está combinado em um organismo. Você encontra todos esses diferentes tipos de carne numa tartaruga falsa, mas o que mantém juntas as diferentes partes é o molho, que ainda assim tem mais 'sustância' do que a tagarelice que o substitui em muitos escritos".]

Mock Turtle Soup: é uma cópia barata da sopa de tartaruga genuína em que se misturam carnes de diferentes animais com um molho grosseiro para imitar o sabor da sopa verdadeira.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Mészàros descarta keynesianismo e regulacionismo como saídas para a crise

[artigo publicado no site do Psol]
Judith Orr e Patrick Ward
Dom, 22 de fevereiro de 2009 12:28
István Mészàros

István Mészàros

Em 1971 István Mészàros ganhou o Prêmio Deutscher pelo seu livro A Teoria da Alienação em Marx. Em janeiro deste ano, ele conversou com Judith Orr e Patrick Ward, da Socialist Review, sobre a atual crise econômica.

Socialist Review – A classe dominante sempre é surpreendida por crises econômicas e fala delas como se fossem aberrações. Por que você acha que as crises são inerentes ao capitalismo?

István Mészàros – Eu li recentemente Edmund Phelps, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia, em 2006. Phelps é um tipo de neokeynesiano. Ele estava, é claro, glorificando o capitalismo e apresentando os problemas atuais como apenas um contratempo, dizendo que “tudo o que devemos fazer é trazer de volta as idéias keynesianas e a regulação.”

John Maynard Keynes acreditava que o capitalismo era ideal, mas queria regulação. Phelps estava reproduzindo a idéia grotesca de que o sistema é como um compositor musical. Ele pode ter alguns dias de folga nos quais não pode produzir tão bem, mas se você olhar no todo verá que ele é maravilhoso! Pense apenas em Mozart – ele deve ter tido o velho e esquisito dia ruim. Assim é o capitalismo em crise, como dias ruins de Mozart. Quem acredita nisso deveria ter sua cabeça examinada. Mas, no lugar de ter sua cabeça examinada, ele ganhou um prêmio.

Se nossos adversários têm esse nível de pensamento – o qual tem sido demonstrado, agora, ao longo de um período de 50 anos, não é apenas um escorregão acidental de economista vencedor de prêmio – poderíamos dizer, “alegre-se, esse é o nível baixo do nosso adversário”. Mas com esse tipo de concepção você termina no desastre de que temos experiência todos os dias. Nós afundamos numa dívida astronômica. As dívidas reais neste país (Inglaterra) devem ser contadas em trilhões.

Mas o ponto importante é que eles vêm praticando orgias financeiras como resultado de uma crise estrutural do sistema produtivo. Não é um acidente que a moeda tenha inundado de modo tão adventista o setor financeiro. A acumulação de capital não poderia funcionar adequadamente no âmbito da economia produtiva.

Agora estamos falando da crise estrutural do sistema. Ela se estende por toda parte e viola nossa relação com a natureza, minando as condições fundamentais da sobrevivência humana. Por exemplo, de tempos em tempos anunciam algumas metas para diminuir a poluição. Temos até um ministro da energia e da mudança climática, que na verdade é um ministro do “lero lero”, porque nada faz além de anunciar uma meta. Só que essa meta nunca é sequer aproximada, quanto mais atingida. Isso é uma parte integral da crise estrutural do sistema e só soluções estruturais podem nos tirar desta situação terrível.

SR – Você descreveu os EUA como levando a cabo um imperialismo de cartão de crédito. O que você quer dizer com isso?

IM – Eu lembro do senador norte-americano George McGovern na guerra do Vietnã. Ele disse que os EUA tinham fugido da guerra do Vietnã num cartão de crédito. O recente endividamento dos EUA está azedando agora. Esse tipo de economia só avança enquanto o resto do mundo pode sustentar sua dívida.

Os EUA estão numa posição única porque têm sido o país dominante desde o acordo de Bretton Woods. É uma fantasia que uma solução neokeynesiana e um novo Bretton Woods resolveriam qualquer dos problemas dos dias atuais. A dominação dos EUA que Bretton Woods formalizou imediatamente depois da Segunda Guerra era realista economicamente. A economia norte-americana estava numa posição muito mais poderosa do que qualquer outra economia do mundo. Ela estabeleceu todas as instituições econômicas internacionais vitais com base no privilégio dos EUA. O privilégio do dólar, o privilégio aproveitado pelo Fundo Monetário Internacional, pelas organizações comerciais, pelo Banco Mundial, todos completamente sob a dominação dos EUA, e ainda permanece assim hoje.

Não se pode fazer de conta que isso não existe. Você não pode fantasiar reformas e regulações leves aqui e acolá. Imaginar que Barack Obama vai abandonar a posição dominante de que os EUA dispõe, nesse sentido – apoiada pela dominação militar – é um erro.

SR – Karl Marx chamou a classe dominante de “bando de irmãos guerreiros”. Você acha que a classe dominante vai trabalhar junta, internacionalmente, para encontrar uma solução?

IM – No passado o imperialismo envolveu muitos atores dominantes que asseguraram seus interesses mesmo às custas de duas horrendas guerras mundiais no século XX. Guerras parciais, não importa o quão horrendas são, não podem ser comparadas ao realinhamento do poder e da economia que seria produzido por uma nova guerra mundial.

Mas imaginar uma nova guerra mundial é impossível. É claro que ainda há alguns lunáticos no campo militar que não negariam essa possibilidade. Mas isso significaria a destruição total da humanidade.

Temos de pensar as implicações disso para o sistema capitalista. Era uma lei fundamental do sistema que se uma força não pudesse ser assegurada pela dominação econômica você recorreria à guerra.

O imperialismo global hegemônico tem sido conquistado e operado com bastante sucesso desde a Segunda Guerra Mundial. Mas esse tipo de sistema é permanente? É concebível que nele não surjam contradições, no futuro?

Algumas pistas vêm sendo dadas pela China de que esse tipo de dominação econômica não pode avançar indefinidamente. A China não será capaz de seguir financiando isso. As implicações e consequências para a China já são bastante significantes. Deng Xiaoping uma vez disse que a cor do gato – seja ele capitalista ou socialista – não importa, desde que ele pegue o rato. Mas e se, no lugar da caçada feliz do rato se termine numa horrenda infestação de ratos de desemprego massivo? Isso está acontecendo agora na China.

Essas coisas são inerentes nas contradições e antagonismos do sistema capitalista. Portanto, temos de pensar em resolvê-los de uma maneira radicalmente diferente, e a única maneira é uma genuína transformação socialista do sistema.

SR - Não há em parte alguma do mundo econômico desacoplamento dessa situação?

IM- Impossível! A globalização é uma condição necessária do desenvolvimento humano. Desde que o sistema capitalista se tornou claramente visível Marx teorizou isso. Martin Wolf, do Financial Times tem reclamado de que há muitos pequenos, insignificantes estados que causam problemas. Ele argumenta que seria preciso uma “integração jurisdicional”, em outras palavras, uma completa integração imperialista – um conceito fantasia. Trata-se de uma expressão das contradições e antagonismos insolúveis da globalização capitalista. A globalização é uma necessidade, mas a forma em que é exequível e sustentável é a de uma globalização socialista, com base nos princípios socialistas da igualdade substantiva.

Ainda que não haja desacoplamento na história do mundo, é concebível que isso não signifique que em toda fase, em todas as partes do mundo, haja uniformidade. Muitas coisas diferentes estão se desenvolvendo na América Latina, em comparação com a Europa, para não mencionar o que eu já assinalei sobre a China, o Sudeste Asiático e o Japão, que está mergulhado em problemas mais profundos.

Vamos pensar no que aconteceu há pouco tempo. Quantos milagres tivemos no período do pós-guerra? O Milagre Alemão, o Milagre Brasileiro, o Milagre Japonês, o Milagre dos cinco Tigres Asiáticos? Engraçado que todos esses milagres tenham se convertido na mais terrível realidade prosaica. O denominador comum de todas essas realidades é o endividamento desastroso e a fraude.

Um dirigente de um fundo hedge foi supostamente envolvido numa farsa envolvendo 50 bilhões de dólares. A General Motors e outras estavam pedindo ao governo norte-americano somente 14 bilhões de dólares. Que modesto! Eles deveriam ter dado 100 bilhões. Se um fundo hedge capitalista pode organizar uma suposta fraude de 50 bilhões, eles devem chegar a todos os fundos possíveis.

Um sistema que opera nesse modo moralmente podre não pode provavelmente sobreviver, porque é incontrolável. As pessoas chegam a admitir que não sabem como isso funciona. A solução não é desesperar-se, mas controlá-lo em nome da responsabilidade social e de uma radical transformação da sociedade.

SR – A tendência inerente do capitalismo é exigir dos trabalhadores o máximo possível, e isso é claramente o que os governos estão tentando fazer na Grã Bretanha e nos EUA.

IM – A única coisa que eles podem fazer é advogar pelos [cortes] dos salários dos trabalhadores. A razão principal pela qual o Senado recusou a injetar 14 bilhões de dólares nas três maiores companhias de automóveis é que não puderam obter acordo sobre a drástica redução dos salários. Pense no efeito disso e nos tipos de obrigações que esses trabalhadores têm – por exemplo, repagando pesadas hipotecas. Pedir-lhes que simplesmente passem a receber metade de seus salários geraria outros tipos de problemas na economia – de novo, a contradição.

Capital e contradições são inseparáveis. Temos de ir além das manifestações superficiais dessas contradições, [às] suas raízes. Você consegue manipulá-las aqui e ali, mas elas voltarão como uma vingança. Contradições não podem ser jogadas para debaixo do tapete indefinidamente, porque o carpete, agora, está se tornando uma montanha.

SR – Você estudou com Georg Lukács, um marxista que retomou o período da Revolução Russa e foi além.

IM – Eu trabalhei com Lukács sete anos, antes de deixar a Hungria em 1956, e nos tornamos amigos muito próximos até a sua morte, em 1971. Sempre nos olhamos nos olhos – é por isso que eu queria estudar com ele. Então aconteceu que quando eu cheguei para estudar com ele, ele estava sendo feroz e abertamente atacado, em público. Eu não aguentei aquilo e o defendi, o que levou a todos os tipos de complicações. Logo que deixei a Hungria, fui designado seu sucessor, na universidade, ensinando estética. A razão pela qual deixei o país foi precisamente porque estava convencido de que o que estava acontecendo era uma variedade de problemas muito fundamentais que o sistema não poderia resolver.

Eu tentei formular e examinar esses problemas em meus livros, desde então. Em particular em “A Teoria da Alienação em Marx” e “Para Além do Capital” (*). Lukács costumava dizer, com bastante razão, que sem estratégia não se pode ter tática. Sem uma perspectiva estratégica desses problemas você não pode ter soluções do dia-a-dia. Então eu tentei analisar esses problemas consistentemente, porque eles não podem ser simplesmente tratados no nível de um artigo que apenas relata o que está acontecendo hoje, ainda que haja uma grande tentação em fazê-lo. No lugar disso, deve ser apresentada uma perspectiva histórica. Eu venho publicando desde que meu primeiro ensaio justamente substancial foi publicado, em 1950, num periódico literário na Hungria, e eu tenho trabalhado tanto como posso, desde então. À medida de nossos modestos meios, damos nossa contribuição em direção à mudança. Isso é o que tenho tentado fazer ao longo de toda minha vida.

SR- O que você pensa das possibilidades de mudança neste momento?

IM – Os socialistas são os últimos a minimizar as dificuldades de solução. Os apologistas do capital, sejam eles neokeynesianos ou o que quer que sejam, podem produzir todos os tipos de soluções simplistas. Eu não penso que podemos considerar a crise atual simplesmente da maneira que o fizemos no passado. A crise atual é profunda. O diretor substituto do Banco da Inglaterra admitiu que esta é a maior crise econômica na história da humanidade. Eu apenas acrescentaria que esta não é apenas a maior crise na história humana, mas a maior crise em todos os sentidos. Crises econômicas não podem ser separadas do resto do sistema.

A fraude e a dominação do capital e a exploração da classe trabalhadora não podem continuar para sempre. Os produtores não podem ser postos constantemente e para sempre sob controle. Marx argumenta que os capitalistas são simplesmente personificações do capital. Não são agentes livres; estão executando imperativos do sistema. Então, o problema da humanidade não é simplesmente vencer um bando de capitalistas. Pôr simplesmente um tipo de personificação do capital no lugar do outro levaria ao mesmo desastre e cedo ou tarde terminaríamos com a restauração do capitalismo.

Os problemas que a sociedade está enfrentando não surgiram apenas nos últimos anos. Cedo ou tarde isso tem de ser resolvido e não, como o vencedor do Prêmio Nobel deve fantasiar, no interior da estrutura do sistema. A única solução possível é encontrar a reprodução social com base no controle dos produtores. Essa sempre foi a idéia do socialismo.

Nós alcançamos os limites históricos da capacidade do capital controlar a sociedade. Eu não quero dizer apenas bancos e instituições financeiras, ainda que eles não possam controlá-las, mas o resto. Quando as coisas dão errado ninguém é responsável. De tempos em tempos os políticos dizem “Eu aceito total responsabilidade”, e o que acontece? Eles são glorificados. A única alternativa exequível é a classe trabalhadora, que é a produtora de tudo o que é necessário em nossa vida. Por que eles não deveriam controlar o que produzem? Eu sempre enfatizei em todos os livros que dizer não é relativamente fácil, mas temos de encontrar a dimensão positiva.

István Mészàros é o autor do recentemente publicado “The challenge and burden of Historical Time”, “Os Desafios e o Fardo do Tempo Histórico”, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial, 2007.

(*) Ambos publicados no Brasil pela Boitempo Editorial.

Tradução de Fabiana Peixoto