quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ajuda Humanitária cubana ao Haiti.

Um pouco melhor que a ajuda "humanitária" brasileira, não acham?




Médicos de Cuba no Haiti: a solidariedade silenciada

José Manzaneda *

Este Texto é o roteiro do vídeo.

Você pode inserir seus comentários sobre o vídeo no YouTube e participar no debate: http://www.youtube.com/watch?v=6DikHDHXvL0]

Os aproximadamente 400 cooperantes da Brigada médica cubana no Haiti foram a mais importante assistência sanitária ao povo haitiano durante as primeiras 72 horas após o recente terremoto. Essa informação foi censurada pelos grandes meios de comunicação internacionais.

A ajuda de Cuba ao povo haitiano não começou por ocasião do terremoto. Cuba atua no Haiti desde 1998 desenvolvendo um Plano Integral de Saúde(1), através do qual já passaram mais de 6.000 cooperantes cubanos da saúde. Horas depois da catástrofe, no dia 13 de janeiro, somavam-se à brigada cubana 60 especialistas em catástrofes, componentes do Contingente "Henry Reeve", que voaram de Cuba com medicamentos, soro, plasma e alimentos(2). Os médicos cubanos transformaram o local onde viviam em hospital de campanha, atendendo a milhares de pessoas por dia e realizando centenas de operações cirúrgicas em 5 pontos assistenciais de Porto Príncipe. Além disso, ao redor de 400 jovens do Haiti formados como médicos em Cuba se uniam como reforço à brigada cubana(3). Os grandes meios silenciaram tudo isso. O diário El País, em 15 de janeiro, publicava uma infografia sobre a "Ajuda financeira e equipamentos de assistência", na qual Cuba nem sequer aparecia dentre os 23 Estados que havia colaborado(4). A cadeia estadunidense Fox News chegava a afirmar que Cuba é dos poucos países vizinhos do Caribe que não prestaram ajuda.

Vozes críticas dos próprios Estados Unidos denunciaram esse tratamento informativo, apesar de que sempre em limitados espaços de difusão.

Sarah Stevens, diretora do Center for Democracy in the Americas(5) dizia no blog The Huffington Post: Se Cuba está disposta a cooperar com os EUA deixando seu espaço aéreo liberado, não deveríamos cooperar com Cuba em iniciativas terrestres que atingem a ambas nações e os interesses comuns de ajudar ao povo haitiano?(6)

Laurence Korb, ex-subsecretário de Defesa e agora vinculado ao Center for American Progress(7), pedia ao governo de Obama "aproveitar a experiência de um vizinho como Cuba" que "tem alguns dos melhores corpos médicos do mundo" e com quem "temos muito o que aprender"(8).

Gary Maybarduk, ex-funcionário do Departamento de Estado propôs entregar às brigadas médicas equipamento duradouro médico com o uso de helicópteros militares dos EUA, para que possam deslocar-se para localidades pouco accessíveis do Haiti(9).

E Steve Clemons, da New America Foudation(10) e editor do blog político The Washington Note(11), afirmava que a colaboração médica entre Cuba e EUA no Haiti poderia gerar a confiança necessária para romper, inclusive, o estancamento que existe nas relações entre Estados Unidos e Cuba durante décadas(12)

Porém, a informação sobre o terremoto do Haiti, procedente de grandes agências de imprensa e de corporações midiáticas situadas nas grandes potências, parece mais a uma campanha de propaganda sobre os donativos dos países e cidadãos mais ricos do mundo. Apesar de que a vulnerabilidade diante da catástrofe por causa da miséria é repetida uma e outra vez pelos grandes meios, nenhum quis se debruçar para analisar o papel das economias da Europa ou dos EUA no empobrecimento do Haiti. O drama desse país está demonstrando uma vez mais a verdadeira natureza dos grandes meios de comunicação: ser o gabinete de imagem dos poderosos do mundo, convertidos em doadores salvadores do povo haitiano quando foram e são, sem paliativos, seus verdadeiros verdugos.

Quadro Informativo 1. Dados da cooperação de Cuba com o Haiti desde 1998:
- Desde dezembro de 1998, Cuba oferece cooperação médica ao povo haitiano através do Programa Integral de Saúde;
- Até hoje trabalharam no setor saúde no Haiti 6.094 colaboradores que realizaram mais de 14 milhões de consultas médicas, mais de 225.000 cirurgias, atendido a mais de 100.000 partos e salvado mais de 230.000 vidas
- Em 2004, após a passagem da tormenta tropical Jeanne pela cidade de Gonaives, Cuba ofereceu sua ajuda com uma brigada de 64 médicos e 12 toneladas de medicamentos.
- 5 Centros de Diagnóstico Integral, construídos por Cuba e pela Venezuela, prestavam serviços ao povo haitiano antes do terremoto.
- Desde 2004 é realizada a Operação Milagre no Haiti e até 31 de dezembro de 2009 haviam sido operados um total de 47.273 haitianos.
- Atualmente, estudam em Cuba um total de 660 jovens haitianos; destes, 541 serão diplomados como médicos.
- Em Cuba já foram formados 917 profissionais, dos quais 570 como médicos. Cuba coopera com o Haiti em setores tais como a agricultura, a energia, a pesca, em comunicações, além de saúde e educação.
- Como resultado da cooperação de Cuba na esfera da educação, foram alfabetizados 160.030 haitianos.
Quadro 2. Dados das atuações do Contingente Internacional de Médicos Cubanos Especializados em Situações de Desastres e Graves Epidemias, Brigada "Henry Reeve", anteriores à cooperação no Haiti:
- Desde sua constituição, a Brigada Henry Reeve cumpriu missões em 7 países, com a presença de 4.156 colaboradores, dos quais 2.840 são médicos.
- Guatemala (Furacão Stan): 8 de outubro de 2005, 687 colaboradores; destes 600 médicos.
- Paquistão (Terremoto): 14 de outubro de 2005, 2 564 colaboradores; destes 1 463 médicos.
- Bolívia (inundações): 3 de fevereiro de 2006-22 de maio, 602 colaboradores; destes, 601 médicos.
- Indonésia (Terremoto): 16 de maio 2006, 135 colaboradores; destes, 78 médicos.
- Peru (Terremoto): 15 de agosto 2007-25 de março 2008, 79 colaboradores; destes, 41 médicos.
- México (inundações): 6 de novembro de 2007 - 26 de dezembro, 54 colaboradores; destes, 39 médicos.
- China (terremoto): 23 de maio 2008-9 de junho, 35 colaboradores; destes, 18 médicos.
- Foram salvas 4 619 pessoas.
- Foram atendidos em consultas médicas 3.083.158 pacientes.
- Operaram (cirurgia) a 18 898 pacientes.
- Foram instalados 36 hospitales de campanha completamente equipados, que foram doados por Cuba (32 ao Paquistão, 2 a Indonésia e 2 a Peru).
- Foram beneficiados com próteses de membros em Cuba 30 pacientes atingidos pelo terremoto do paquistão.

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Notas:
(1) http://cubacoop.com
(2) http://www.prensa-latina.cu/index.php?option=com_content&task=view&id=153705&Itemid=1
(3) http://www.ain.cu/2010/enero/19cv-cuba-haiti-terremoto.htm
(4) http://www.pascualserrano.net/noticias/el-pais-oculta-344-sanitarios-cubanos-en-haiti
(5) http://democracyinamericas.org
(6) http://www.huffingtonpost.com/sarah-stephens/to-increase-help-for-hait_b_425224.html
(7) http://www.americanprogress.org/
(8) http://www.csmonitor.com/USA/Military/2010/0114/Marines-to-aid-Haitian-earthquake-relief.-But-who-s-in-command
(9) http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/01/14/AR2010011404417_2.html
(10) http://www.newamerica.net/
(11) http://www.thewashingtonnote.com/
(12) http://www.thewashingtonnote.com/archives/2010/01/american_diplom/
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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Haiti parte III: Haiti e Democracia Global: qual o papel do Brasil?

As intervenções humanilitares do governo Obama na ilha, parecem ter reafirmado, como nos diz Peter Hallaward, as principais tendências da intervenção americana na recente história haitiana: prioridades militares e estratégicas; exclusão dos próprios líderes haitianos do espaço político de debate; e a desconsideração dos interesses da maior parte da população. E, ainda com Hallaward: a história do Haiti desde 1990 parece ser o progressivo esclarecimento da sua dicotomia básica: Democracia e Exército.

E se, em vez de esta dicotormia ser própria a história haitina, ela for imanente à própria Democracia? Ao contrário do que ouvimos mais comumente, o problema crucial não é que o humanitarismo democrata norte-americano é extremamente limitado, não é que ele tenha um limite exterior intransponível quando se tratam de políticas estratégicas de intervenção militar. Ao contrário, o humanitarismo democrata é tão forte que até o Exército e as ocupações militares no Iraque, Afeganistão, Haiti etc são humanitárias. Donde o presidente Obama, prêmio Nobel do Cinismo em 2010, inaugura agora um novo período da democracia global: o humanilitarismo.

Quanto ao Brasil podemos discutir sua participação em termos de Imperialismo ou Sub-imperialismo. Afinal: será mesmo que Imperialismo pressupõe pertencer ao grupo de países de primeiro mundo? Será que um sub-imperialismo dá conta de explicar os interesses reais do Brasil no Haiti uma vez que em certa medida conflitam com os interesses norte-americanos?

O que parece indiscutível, entretanto, é que, como nos afirmou Chris Floyd, nenhuma intervenção humanitária (ou humanilitar) no Haiti vai conseguir de fato reconstruir o país: se nem mesmo os EUA conseguiram reconstruir Nova Orleans, vítima de outra catástrofe “natural”, o que nos faz pensar que o Haiti, que está sob vigilância imperialista desde que se libertou da França, conseguirá?

Principalmente no período de crise estrutural que se abateu sob o capitalismo contemporâneo, a catástrofe do Haiti é uma bela oportunidade de “leiloar” a reconstrução do país que, obviamente, será realizada por outras empresas (e talvez pela corja de Andy Apaid?) interessadas em explorar a mão-de-obra barata da população haitiana faminta. E se o governo Lula finalmente azeitou o capitalismo brasileiro... Então porque não tentar tomar a frente deste processo?

Outro aspecto indiscutível: se, conforme vêm dizendo Zizek e Agamben, a Democracia está escancarando o vínculo umbilical que guarda com os regimes de Exceção e os Totalitarismos, é interessante mostrar como uma atitude repressiva pode aparecer como democrática interna e externamente. Afinal, não é interessante que aos olhos do mundo a imagem de tropas Norte-Americanas e Brasileiras, lado a lado na ocupação humanilitar haitiana, apareçam como uma ocupação mais “Democrática”? Não é mais os EUA fazendo o serviço sujo sozinho... Os pobres brasileiros também reprimem seus irmãos (também pobres) haitianos, numa forma obscena do jargão democrata “autodeterminação dos povos”: “Eles”, o terceiro mundo, os famintos, se “autodeterminam” na repressão um do outro, “nós” do primeiro mundo não precisamos nos sentir tão culpados. Além disso não é possível ignorar o ato-falho institucional do Coronel Bernardes, comandante no Haiti, ao dizer que a ocupação brasileira no Haiti é um bom laboratório para militares brasileiros conterem rebeliões em favelas cariocas.

Ironicamente, 200 anos depois da revolução haitiana, a mensagem libertária da marselhesa cantada em combate contra os franceses é obscenamente invertida: somos nós, brasileiros que cantamos The Star-Spangled Banner dizendo “somos mais americanos do que os americanos”... mas não contra os próprios Estados Unidos, e sim contra o povo haitiano!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Haiti Parte II: panorama histórico do Imperialismo como "penitência".

Se a Europa "aceitou" mais facilmente o reconhecimento do Haiti como nação livre (após o pagamento de indenizações aos ex-proprietários de escravos), quanto ao reconhecimento da independência Haitiana por parte dos Estados Unidos, a coisa não foi tão simples assim. Foram 60 anos até que a “terra da liberdade” reconhecesse a independência do país. Reconhecimento este que não tardou em demonstrar sua verdade. Menos de 60 anos após o reconhecimento oficial da independência do Haiti, em 1915, os EUA invadem o Haiti para a defesa dos interesses do City Bank e da National Railroad.

Em 1917, Charlemagne Perálte organiza um levante contra a ocupação norte-americana, liderando o grupo guerrilheiro conhecido como Cacos, nome que remontava às tropas rurais que participaram da revolução Haitiana do início do século XIX. Perálte é assassinado dois anos mais tarde, em 1919.

Em 1934 “termina a ocupação norte-americana no Haiti, por decisão do governo Hoover, provavelmente muito mais preocupado com a crise e com a “invenção do keynesianismo”. Em agosto deste ano são retiradas as últimas tropas de mariners americanos que ocupavam o país, muito embora os Estados Unidos tenham deixado em seu lugar o exército nativo, armado pelo próprio exército estadunidense, chamado Haitian Constabulary.

Entre a catástrofe da "Boa Vizinhança de Bush I e o Humanilitarismo de Obama".

Em 1990 o movimento Fanmi Lavalás leva democraticamente ao poder o Padre Católico progressita Jean-Bertrand Aristide. Pouco tempo depois é organizado um golpe que depõe Aristide. O que poucos sabem é que o golpe não foi conseqüência de um movimento popular genuíno insatisfeito com as políticas democráticas de Aristide. Mas uma orquestração do governo Bush que financiou armas aos senhores da Guerra haitianos, por um lado, e por outro cortando ajuda financeira oficial ao país.

Aristide é então levado aos Estados Unidos, onde permanece até 1994 quando o governo Clinton o restabelece no poder para que termine o mandato oficial (que iria até 1996) e realize novas eleições. As eleições são realizadas com sucesso, embora com candidato único e com 80% de abstenção da população haitiana, levando ao poder o conservador, mas simpatizante do governo ianque, René Preval, que permanece pacificamente no poder até 2000, quando começa a segunda era Bush.

Em 2000 Jean-Bertrand Aristide é reeleito presidente do Haiti, porém estouram algumas alegações de irregularidade nas eleições (a terceira eleição democrática em 200 anos de independência). É claro que tais “irregularidades” nem se comparam ao conto de fadas das contagens, recontagens, e tricontagens de votos das eleições que levaram o “presidente” Bush II ao poder com a polêmica votação da Florida. Assim, convocam-se novas eleições.

Porém a direita do Haiti se recusa a participar e Bush II nega a ajuda prometida de 500 milhões para o governo haitiano até que fossem realizadas novas eleições, deixando o governo de Aristide num impasse polítio-econômico.

O crime de Aristide foi a proposta e a posterior tentativa de implementá-la, de aumentar o salário mínimo no Haiti para a quantia de dois dólares ao dia, despertando a ira das empresas e corporações americanas que estavam instaladas no país para o aproveitamento da mão-de-obra barata. Neste clima de instabilidade, vai se apertando cada vez mais o garrote que sufocava o governo Aristide, sob a orquestração do governo Bush II de um lado e das empresas e coorporações multinacionais instaladas no país sob a liderança política de André “Andy” Apaid, empresário da Alpha Industries cidadão Americano mas residente no Haiti.

Apaid era considerado a peça chave da “reforma de mercado” que o governo Reagan-Bush estabeleceu na ilha caribenha que, dentre outras medidas, estabeleceu a queda dos impostos de importação sobre o Arroz (artigo crucial na economia haitiana) levando a produção local de arroz à bancarrota e ao desemprego de milhares de camponeses que se viram obrigados a engrossar a concorrência da mão-de-obra barata do Haiti, o que favoreceu, principalmente, a empresa de Apaid. Vale lembrar que estas reformas foram estabelecidas em definitivo como condição imposta à Aristide por parte do governo Clinton, para que o presidente deposto pudesse voltar ao governo. A fome no Haiti não é conseqüência do terremoto: é um programa político e econômico que vem sendo organizado há mais de 15 anos em conchavo pelos Estados Unidos e pelos grupos mais conservadores do país.

Após a polêmica do aumento dos salários, Andy Apaid liderando o Grupo dos 184, passou a pressionar novamente o governo Aristide, em decorrência do aumento salarial imposto por sua política, e, com o apoio do contrabando de armas oferecidas pelos Estados Unidos, entrando no país através da República Dominicana. Em 2004 o Grupo dá o ultimato: ou Aristide renuncia a presidência e embarca para a África ou ninguém se responsabilizará pelo assassinato do presidente, a ser cometido pelos senhores da guerra haitianos. É a volta da ocupação norte-americana no país e a entrada de tropas brasileiras no local.

Em 2009 ocorrem eleições para o senado com nada mais nada menos do que 90% de abstenção por parte da população haitiana em protesto à decisão do governo apoiado pelos EUA que impediu que o partido mais popular do país, o movimento Fanmi Lavas, de onde surgiu o governo Aristide, participasse das eleições.

Haiti Parte I: um "retorno do recalcado".

A primeira coisa que chama a atenção na tragédia haitiana é o fato de que todo o clamor público/publicado sobre o terremoto tem sido apresentado como uma trágica catástrofe natural/ambiental que, de uma hora pra outra, lançou na condição de miséria uma grande parte da população, sem contar a morte de quase um por cento dela. Neste sentido podemos reafirmar o pensamento de Zizek: se para Marx a religião era o ópio do povo (no sentido de ser o exemplo mais bem acabado de uma ideologia que permite as distorções ou manipulações da dinâmica real do desenvolvimento político e econômico do capitalismo e do capital-parlamentarismo) hoje a “ecologia” é que é o ópio do povo. Afinal, a catástrofe haitiana é realmente o terremoto? Devemos nos solidarizar, como têm afirmado as campanhas “humanilitares” burguesas, com uma tragédia absolutamente contingente que caiu sobre as cabeças dos haitianos, como o céu para os gauleses? Afinal, se este é o escopo da ação humanilitar, todos somos “iguais” diante da ação incompreensível da natureza: Haiti, Estados Unidos, Brasil... todos impotentes diante das intempéries climáticas.

Logo após o terremoto do Haiti, em 13 de janeiro deste ano, o cristão fundamentalista Pat Robertson (pastor Norte-Americano) deu a seguinte declaração: “Os Haitianos estavam sob as rédeas dos franceses. Vocês sabem, Napoleão III e seja lá o que for. E eles se uniram e firmaram um pacto com o Diabo. Eles disseram, ‘nós vamos serví-lo se você nos ajudar a nos libertar dos franceses.’ História verídica. Então, o diabo disse, ‘ok, estamos combinados!’”. A mensagem aqui é clara: há 200 anos, desde que a revolução haitiana eclodiu levando a nata da intelectualidade européia a olhar para aquela pequena ilha caribenha, o Haiti vem pagando o preço por ter se libertado. Agora Deus (tomando as dores de Napoleão III e “seja lá o que for”) está cobrando o preço. Se existe algum exemplo de como religião e ecologia se assemelham enquanto mistificação ideológica, este exemplo é a catástrofe haitiana.

De maneira geral, a tentativa burguesa de reduzir o problema haitiano a uma mera catástrofe ambiental (obliterando ostensivamente todo o contexto histórico em que foi gerada a miséria do povo haitiano e suas relações com o imperialismo norte-americano e o capital global) não se assemelha e muito à estrutura argumentativa de Robertson? Em ambos os casos postulamos uma causa transcendente (Deus/Meio Ambiente) que por ser incompreensível ou inatingível nos permite despolitizar todas as conseqüências e causas materiais da catástrofe. É claro que o meio ambiente está sofrendo com a ação humana, mas porque é que o Japão não necessita de ajuda humanitária internacional e intervenções da ONU e o Haiti precisa? Esta pergunta diz respeito à forma como compreendemos as relações político-econômicas e históricas concretas em que o Estado Haitiano fundou suas bases.

Entretanto, a esquerda deve conceder um tanto de verdade à Pat Roberston, sem ter medo de com isto “pactuar ela própria com o diabo do fundamentalismo cristão”. Em 1804, o Haiti se libertou da dominação francesa. O fato mais crucial é que não foi uma guerra pela independência como todas as outras: o que ocorreu no Haiti foi um movimento radical emancipatório (Comunista, porque não?) em que escravos negros se revoltaram contra sua condição subhumana e não só reivindicaram “direitos iguais” mas tomaram o Estado e se arvoraram, eles próprios, no direito de definirem a si próprios socialmente, em outras palavras: não lutaram por “inclusão” mas para transformar radicalmente o próprio modelo político que os produzia enquanto “excesso/excremento” social. Se nos permitirmos a uma leve digressão, na esteira do que nos disse Chris Floyd: os haitianos em 1804 conseguiram aquilo que Espártacus 2000 anos antes falhou em conseguir. E já que estamos na digressão, na famosa cena final do Filme de Kubrick, Spartacus (Estados Unidos 1960), quando o herói insurgente, sob as ordens do sádico Marcus Licinius Crassus, é subjugado e obrigado a lutar com um de seus companheiros revolucionários ferindo-o mortalmente, diante da tragicidade da cena ele profere a seguinte frase: “Ele voltará e ele será milhões!”. Não é a toa que o ocidente não engoliu muito bem a revolução Haitiana, profetizada 2000 anos antes e “retornada do recalcado” poucos anos após a revolução francesa.

A maior ironia histórica, como nos mostra Zizek, é que as tropas napoleônicas, enviadas para suprimir a revolta revolucionária, ao se posicionarem em campo de batalha, ouviram o que em princípio pareciam cantos tribais da parte dos haitianos, quando na verdade tratava-se da marselhesa, o que por um instante fez com que os franceses se questionassem (lembremos que estamos há 15 anos da revolução francesa) sobre de que lado estavam. E a mensagem haitiana é clara: “nós, escravos negros haitianos, somos mais franceses” - no sentido da mensagem revolucionária iluminista, é claro – “do que vocês!” E isto a França, o ocidente, não poderia engolir.

Mas voltando a Robertson, onde está a sua “verdade”? Após todo o longo entusiasmo da mensagem libertária haitiana que chamou a atenção, por alguns instantes, de toda a intelectualidade Moderna Européia, inebriada pelo iluminismo, o sucesso da insurgência revolucionária dos escravos foi pressionado pelos países Europeus que se recusaram a reconhecer a independência haitiana a não ser sob a condição do pagamento de “indenizações” aos ex-proprietários de escravos. O novo estado Haitiano cedeu à pressão e traiu o espírito revolucionário. Logo após, se iniciou a corrida do Estado Haitiano de estabelecer, agora sob condições de “trabalho livre”, as bases do desenvolvimento capitalista e da propriedade privada no Haiti e sua entrada no comércio internacional, reproduzindo a exploração do capital entre os próprios ex-revoltosos. O verdadeiro “pacto com o diabo” foi a traição do movimento revolucionário encabeçado pela luta escrava de 1804, iniciando o período de 200 anos em que os Haitianos “pagaram o preço” pela traição revolucionária: sua história de sucessivas intervenções militares imperialistas por parte dos Estados Unidos que culminaram na recente história da dominação haitiana de Bush I ao "humanilitarismo" de Barack Obama.