A primeira coisa que chama a atenção na tragédia haitiana é o fato de que todo o clamor público/publicado sobre o terremoto tem sido apresentado como uma trágica catástrofe natural/ambiental que, de uma hora pra outra, lançou na condição de miséria uma grande parte da população, sem contar a morte de quase um por cento dela. Neste sentido podemos reafirmar o pensamento de Zizek: se para Marx a religião era o ópio do povo (no sentido de ser o exemplo mais bem acabado de uma ideologia que permite as distorções ou manipulações da dinâmica real do desenvolvimento político e econômico do capitalismo e do capital-parlamentarismo) hoje a “ecologia” é que é o ópio do povo. Afinal, a catástrofe haitiana é realmente o terremoto? Devemos nos solidarizar, como têm afirmado as campanhas “humanilitares” burguesas, com uma tragédia absolutamente contingente que caiu sobre as cabeças dos haitianos, como o céu para os gauleses? Afinal, se este é o escopo da ação humanilitar, todos somos “iguais” diante da ação incompreensível da natureza: Haiti, Estados Unidos, Brasil... todos impotentes diante das intempéries climáticas.
Logo após o terremoto do Haiti, em 13 de janeiro deste ano, o cristão fundamentalista Pat Robertson (pastor Norte-Americano) deu a seguinte declaração: “Os Haitianos estavam sob as rédeas dos franceses. Vocês sabem, Napoleão III e seja lá o que for. E eles se uniram e firmaram um pacto com o Diabo. Eles disseram, ‘nós vamos serví-lo se você nos ajudar a nos libertar dos franceses.’ História verídica. Então, o diabo disse, ‘ok, estamos combinados!’”. A mensagem aqui é clara: há 200 anos, desde que a revolução haitiana eclodiu levando a nata da intelectualidade européia a olhar para aquela pequena ilha caribenha, o Haiti vem pagando o preço por ter se libertado. Agora Deus (tomando as dores de Napoleão III e “seja lá o que for”) está cobrando o preço. Se existe algum exemplo de como religião e ecologia se assemelham enquanto mistificação ideológica, este exemplo é a catástrofe haitiana.
De maneira geral, a tentativa burguesa de reduzir o problema haitiano a uma mera catástrofe ambiental (obliterando ostensivamente todo o contexto histórico em que foi gerada a miséria do povo haitiano e suas relações com o imperialismo norte-americano e o capital global) não se assemelha e muito à estrutura argumentativa de Robertson? Em ambos os casos postulamos uma causa transcendente (Deus/Meio Ambiente) que por ser incompreensível ou inatingível nos permite despolitizar todas as conseqüências e causas materiais da catástrofe. É claro que o meio ambiente está sofrendo com a ação humana, mas porque é que o Japão não necessita de ajuda humanitária internacional e intervenções da ONU e o Haiti precisa? Esta pergunta diz respeito à forma como compreendemos as relações político-econômicas e históricas concretas em que o Estado Haitiano fundou suas bases.
Entretanto, a esquerda deve conceder um tanto de verdade à Pat Roberston, sem ter medo de com isto “pactuar ela própria com o diabo do fundamentalismo cristão”. Em 1804, o Haiti se libertou da dominação francesa. O fato mais crucial é que não foi uma guerra pela independência como todas as outras: o que ocorreu no Haiti foi um movimento radical emancipatório (Comunista, porque não?) em que escravos negros se revoltaram contra sua condição subhumana e não só reivindicaram “direitos iguais” mas tomaram o Estado e se arvoraram, eles próprios, no direito de definirem a si próprios socialmente, em outras palavras: não lutaram por “inclusão” mas para transformar radicalmente o próprio modelo político que os produzia enquanto “excesso/excremento” social. Se nos permitirmos a uma leve digressão, na esteira do que nos disse Chris Floyd: os haitianos em 1804 conseguiram aquilo que Espártacus 2000 anos antes falhou em conseguir. E já que estamos na digressão, na famosa cena final do Filme de Kubrick, Spartacus (Estados Unidos 1960), quando o herói insurgente, sob as ordens do sádico Marcus Licinius Crassus, é subjugado e obrigado a lutar com um de seus companheiros revolucionários ferindo-o mortalmente, diante da tragicidade da cena ele profere a seguinte frase: “Ele voltará e ele será milhões!”. Não é a toa que o ocidente não engoliu muito bem a revolução Haitiana, profetizada 2000 anos antes e “retornada do recalcado” poucos anos após a revolução francesa.
A maior ironia histórica, como nos mostra Zizek, é que as tropas napoleônicas, enviadas para suprimir a revolta revolucionária, ao se posicionarem em campo de batalha, ouviram o que em princípio pareciam cantos tribais da parte dos haitianos, quando na verdade tratava-se da marselhesa, o que por um instante fez com que os franceses se questionassem (lembremos que estamos há 15 anos da revolução francesa) sobre de que lado estavam. E a mensagem haitiana é clara: “nós, escravos negros haitianos, somos mais franceses” - no sentido da mensagem revolucionária iluminista, é claro – “do que vocês!” E isto a França, o ocidente, não poderia engolir.
Mas voltando a Robertson, onde está a sua “verdade”? Após todo o longo entusiasmo da mensagem libertária haitiana que chamou a atenção, por alguns instantes, de toda a intelectualidade Moderna Européia, inebriada pelo iluminismo, o sucesso da insurgência revolucionária dos escravos foi pressionado pelos países Europeus que se recusaram a reconhecer a independência haitiana a não ser sob a condição do pagamento de “indenizações” aos ex-proprietários de escravos. O novo estado Haitiano cedeu à pressão e traiu o espírito revolucionário. Logo após, se iniciou a corrida do Estado Haitiano de estabelecer, agora sob condições de “trabalho livre”, as bases do desenvolvimento capitalista e da propriedade privada no Haiti e sua entrada no comércio internacional, reproduzindo a exploração do capital entre os próprios ex-revoltosos. O verdadeiro “pacto com o diabo” foi a traição do movimento revolucionário encabeçado pela luta escrava de 1804, iniciando o período de 200 anos em que os Haitianos “pagaram o preço” pela traição revolucionária: sua história de sucessivas intervenções militares imperialistas por parte dos Estados Unidos que culminaram na recente história da dominação haitiana de Bush I ao "humanilitarismo" de Barack Obama.
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