Freud demonstrou como a busca pela segurança, durante a modernidade, estava baseada numa economia libidinal de repressão aos desejos e às pulsões inerentes à condição humana. É isso, em parte, que leva Foucault a demonstrar como esta mesma repressão estava diretamente relacionada à forma de coesão e de relacionamento familiar dentro do espaço doméstico (a estrutura da família burguesa pautada na repressão à sexualidade da criança e da mulher, primordialmente).
Não é por acaso que Bauman chega a comentar a obra de Foucault e dizer que se durante a modernidade a repressão à sexualidade era o que fundamentava os laços de integração familiar, hoje, em tempos pós-modernos, é a liberdade sexual entrou na lógica do consumo e é uma (privilegiada) fonte de acumulação de prazeres. O que, de forma obscena, faz com que tudo esteja implicitamente imbutido de intenção sexual, minando relações afetivas de outras ordens pelo medo patológico, por exemplo, da pedofilia (vejam o imenso número de regras implícitas que permeiam nosso contato físico com crianças hoje).
A "liquidez" do amor, para usar uma expressão de Bauman, leva a outra profusão de práticas amorosas/afetivas/sexuais que encontram dentro das teias cibernéticas de interação social uma nova forma de aceitação do amor. Tal como no msn, relacionamentos são insuportáveis quando não se pode estar/aparecer offline num clique de mouse! Tudo isto anda lado-a-lado com a liberdade hodierna em falar sobre sexo e praticar o sexo.
Acredito ser indispensável ressaltar, porém, que tudo isto está inextricavelmente ligado à visão senso-comum a respeito do amor e da sexualidade: como duas coisas que se podem muito bem separar... sem maiores problemas.
É este o centro gravitacional desta reflexão.
Comecemos por uma famosa frase de Woody Allen, nos minutos finais de seu longa-metragem "Manhattan" (sim, existe um longa do Woody Allen criativamente denominado "Manhattan"!): 'é possível realmente separar sexo e amor?' A resposta padrão é sempre "Sim, CLARO!".
Mas, se voltarmos os olhos para Lacan, vemos como, pelo processo de alienação e de separação, o desejo do sujeito surge do confronto com o desejo do Outro ou, mais específicamente, da "mOther", o Outro materno. A satisfação do desejo da criança deve passar, necessariamente, pela mediação da mãe como fonte de satisfação e pela necessidade de que este Outro tenha como fonte única de satisfação de seus próprios desejos, a criança. A impossibilidade dessas duas condições é que leva a criança a criar um 'objeto pequeno a' (objeto-causa do desejo) que servirá de suporte da sua fantasia e será protegido por ela, encontrando nesta fantasia a possibilidade de uma "encenação da satisfação de um desejo imperioso", para usar as palavras de Fernando Marcelino, uma vez que a satisfação real é impossível. Com isso passamos a buscar, longe do Outro materno, TODAS as outras formas de satisfação do nosso desejo.
A primeira conclusão é que todo o desejo nasce do amor materno! Do ponto de vista psicanalítico, pelo menos, a função do amor materno é a criação do desejo, sexual inclusive (ou principalmente?).
Se, politizando Lacan, pensarmos com Žižek na idéia lacaniana de que amar é dar o que não se tem para alguém que não o quer, de qualquer forma, encontramos aqui um desequilíbrio fundamental. E fundamental porque de fato funda o amor, dentre outras coisas pela paranóia constante do medo de perder a pessoa amada, afinal nunca se sabe, precisamente, porque ela ama! O amor é, portanto, uma quebra radical do equilíbrio normal das coisas. O Amor é Mau!
E aqui há uma face política do amor. O Amor como Evento perturbador. E uma contrapartida revolucionária da lógica da sexualidade e do amor pós-hippie: O Amor é Mau!
Voltando a pergunta de Woody Allen, 'é possível separar sexo e amor?', sabendo que o cineasta é um neurótico extremamente freudiano: voilà! A resposta é Não! O que significa que a maneira verdadeiramente revolucionária de encarar o sexo e o amor (que é mau) é vislumbrando um risco sempre presente de o segundo se irromper no primeiro. De o Amor destruir o equilíbrio "normal" do sexo e do prazer, da mesma maneira com que devemos encarar o Evento político: assumir integralmente o risco e a responsabilidade por ele.
Como nos ensinam Ocean Colour Scene:
"cos we all take our chances to find out romance is in someother's bed
And you might burn your fingers hock your best rings for those
who'd have you standing naked, then, publicly auction the use of a hose".
13 comentários:
reprimindo ou incitando, nos acostumamos, desde muitos séculos, a acreditar que o sexo e as práticas sexuais estavam estavam no fundamento essencial de nosso ser e de nossa vida, o que o despolitizava e permitia tratá-lo em termos meramente biológicos. Se o amor for encarado, nesse sentido, como forma de devolver ao sexo a sua dimensão política, trazendo-lhe a possibilidade de ter tantas significações quanto forem possíveis, de devolvê-lo ao uso comum, fazê-lo ser apenas uma forma de prazer entre outras, acredito sim que o amor pode fazer o "nosso" sexo deixar de ser poder sobre a vida para funcionar como potência de vida...
Algumas reflexões:
"Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar."
Fernando Pessoa
HAI KAI (meu)
Amo-te e amo muito
E amar é matar a mim
Que, aMOR, TE ama.
Rapazeada... fiquei muito feliz com os dois comentários! Acho que ambos conseguiram captar precisamente o espírito! Acho que vcs dois tão bem em sintonia com o que eu quis dizer aí! Acho que vale a pena dar uma olhada no blog do fernando também Transhumano (tem um link no meu blog) pq ele também tá na discussão sobre o amor!!! E Felipe, curti pra caramba teu hai kai!!!!!!!!!!!! publica no blog pra eu botar um link ali no texto
Putz, Catarina, vc tocou em várias questões cruciais realmente:
Em primeiro lugar estou completamente de acordo com a tua afimração a respeito da separação sexo x amor: ela não existe sob o ponto do risco constante de o segundo se irromper no primeiro, como disse no texto, mas existe sob a forma artificial da necessidade capitalista tardia dos prazeres do consumo. O sexo nesse sentido é um sexo "light"; um "sexo sem gordura trans"... um "sexo sem amor". Mas frisando que essa separação é artificial. E é óbvio que não estamos aqui (e seria ridículo!) dizer que só podemos nos relacionar sexualmente com quem amamos, num tom de moralidade vitoriana. Mas estar aberto ao risco, sempre! Este é o imperativo! (Mas nisso acho que concordamos).
Quanto à questao: "o amor é o mesmo ou o amor mudou diante das condições políticas?" poderia utilizar "analogicamente" (mas nem tanto assim) o argumento de Foucault em história da sexualidade: as práticas sexuais historicamente concretas é que criam o sexo. OU SEJA não existe o sexo puro, do qual derivam as práticas conforme as contingências histórico-políticas e culturais. Mas sim somente as práticas historicamente localizadas! Da mesma forma, acredito que não existe o amor (e esse é o argumento Lacaniano em última instância... por isso o Amor é mau) somente formas histórico-políticas concretas de aceitação do amor. De como nos entregamos a ele.
Quanto ao teu comentário final: "talvez seja necessário esclarecer o que é esse tal AMOR que todos citam como salvação à irredutível liquidez pós-moderna. Não sei se o Zizek define, sei que o Bauman, ao que me parece, não o fez." Estou de pleno acordo. Acho que Zizek também não o fez, de forma exaustiva pelo menos. Talvez nem mesmo Lacan (mas isso é um trabalho para FERNANDO MARCELINO) Só que acho que o Zizek dá matéria prima para se pensar o amor de forma radical. Na verdade a frase "O Amor é Mau" (Love is Evil) é dele. Mas ele não chega a explicá-la detalhadamente. Isso é um trabalho para nós, pós-modernos revolucionários. Quanto ao Bauman, ele dá muita matéria também para pensar a crise desse amor líquido. Mas é necessário algo mais na fala dele. Um compromisso político um pouco maior. (Coisa que aliás falta na obra dele como um todo). Por isso a necessidade talvez de lacanizar Bauman (com a ajuda de Zizek, Badiou, Safatle etc). Acho que esse é um imperativo interessantíssimo da nossa busca pela contrapartida revolucionária do Amor pós-hippie, como violência que emancipa!
1) Não existe metalinguagem entre sexo e amor.
2) Se o amor está ligado a posição do sujeito como objeto-causa do desejo trabalhando com o sujeito barrado (sujeito transcendenttal), o amor não está na esfera de determinada forma de relacionamento, mas sim num tipo específico de tranferência, talvez pautada na impossibilidade de dizer a verdade.
3) Se o amor é essa relação de transferência (talvez aqui seria interessante frizar o caráter universalista do homem e antagonista da mulher), existem técnicas para amar - acessar os aspectos "inumanos", os excessos constitutivos "a mais que a pessoa".
4) Aqui não podemos clamar que na pós-modernidade está existindo um desengajamento amoroso, pois assim como a política, é preciso passar por uma técnica de amar. Diferentemente das personificações do New Age hoje e seu permissivismo tolerante (intolerante apenas com o excesso, com o antagonismo do sujeito barrado!), assim como aprendemos a desejar também aprendemos a amar PELA fantasia.
5) Finalizando, podemos dizer que o amor esta fora de moda já que o aparato de entendimento sobre ele está se perdendo.
6) Finalizando novamente, não podemos pensar o amor a partir da tríade lacaniana Imaginário, Simbólico e Real? A primeira identificação (Hegel diria reconhecimento) é a imaginária, a mais precária e baseada em suposições - como tocar em um dos pólos dessa tríade é automaticamente tocar outro pode-se passar a identificação simbpolica - quando o primeiro impacto se vai por uma troca de linguagem e as sobras imaginárias são cortadas - é um nível de identificação mais profundo por consequencia lógica. Hoje, o processo de passagem da identificação imaginária para a simbólica me parece que está perdendo a eficácia pela ascensão da interpassividade já que, hoje, temos medo de cair numa identificação com o Outro. Como é a passagem para a identificação Real: fico tentato a dizer que ISSO é o que podemos chamar de Amor.
Um ponto sobre as possíveis ligações entre Amor e Evento que estive pensando um dia desses que só vou deixar aqui uma casquinha porque aprofundaremos isso mais tarde e com mais tempo. Tese - não existe metalinguagem entre amor e sexo. Nesse sentido, as duas operam em planos completamente diferentes, estão em paralaxe. A pergunta que fica então é: qual é a lacuna que sempre escapa a compreensão simbólica que transforma seus contornos fenomenais? O Evento como indicernível.
Há uma interpretação completamente diversa da de vocês, do Luc Ferry, filósofo conservador francês. Para ele, nunca houve tanto amor. Amor aqui indico o que Wittgenstein indicaria: o sentido mais senso-comum, pois os sentidos filosóficos/psicanalíticos só existem quando a linguagem entra em férias. Não falo de liquidez e transferências. Ferry diz, por exemplo, que o caso da menina jogada do prédio só poderia ter provocado tamanha comoção na contemporaneidade. Hoje filhos são os objetos desse amor maternal incondicional e protetor que todos partilham como óbvio (a fantasia constituinte de nossa realidade). Isso porque filhos eram tidos, nas épocas passadas de mais incertezas quanto à sobrevivência, aos montes, como instrumentos de trabalho, sem que houvesse qualquer segurança quanto à sua vida. Neste sentido, a união de casais, não sendo fruto de uma história de amor mútuo, serviam somente para a reprodução do [i]animal laborans[/i], como o próprio trabalho servia(e serve) também só para a reprodução das funções vitais, como estivesse o homem num estado animalesco de natureza bruta na prática sexual. Claro, sempre se pode falar que no nível inconsciente o casamento e o sexo servem para a mesmíssima coisa nos nossos dias, mas isso é procurar no homem primitivo e instintivo a essência do homem hodierno, ignorando toda a linguagem (e a fantasia) constituinte do seu ser-aí, que não é o ser-aí do homem primitivo (aí minha desconfiança, que é a do Heidegger, com os métodos antropológicos - como do totem e tabu - para afirmações peremptórias sobre o homem pós-moderno). Hoje, pelo contrário, o amor (sempre no senso comum) é visto pela doação, coisa talvez antigamente exclusiva dos níveis da nobreza nas sociedades de corte. Há menos casamentos por conveniência graças à ideia do amor livre, e os filhos são antes tidos para a constituição da família - aquela família em que todos partilham do mesmo amor - do que para o sustento dos pais. E talvez por isso essa superproteção da infância hoje em dia. Se falamos em liquidez, creio que a sociedade de consumo tem muita influência, mas é preciso observar que o senso-comum estabeleceu a ideia de amor que nem sempre corresponde à vivida pelo casal, que então precisará procurar em novas histórias a realização daquela fantasia. Neste sentido, parece-me haver mais liberdade nas escolhas relacionais - ainda que moldada por certos estereótipos do discurso ficcional (mas isso não é apanágio exclusivo da publicidade ou da mídia capitalista) - que em tempos em que o amor era chancelado pela religião e sacralizado em atos irrevogáveis. Mas isso não depõe contra a proclamada evildade do amor, que ainda parece se basear no desequilíbrio fundamental. O que muda é a ênfase: para além do indivíduo - do barramento do sujeito, seja lá o que for isso (ainda tenho medo da psicanálise) - para uma esfera mais transcedental inter-humana, a do ser-com e, na linguagem da hermenêutica de Heidegger, a da decadência no sempre-já-sabido, o que talvez seja o nível da ideologia zizekiana. Não nego que a descoberta do outro possa ser produto do barramento, da insatisfação do desejo, etc. etc. Mas a cadeia de significados absorvida pelo sujeito admitido como não-solipsista não pode advir pronta dessas experiências primitivas do indivíduo. As fantasias que nos constituem - a nós que somos todos Dons Quixotes e Madames Bovaries - se fazem na nossa temporalidade como um todo: as origens dos traumas (ou, na minha linguagem que não entende a psicanálise, das nossas disposições) podem até ser identificáveis, mas jamais isoláveis como pontuais em nossa vivência.
Ah, Chrysanto, eu já postei aquele Haicai em outubro.
Sempre é necessário ter um soco inglês caso se encontre esse neokantianos na rua.
talvez não seja tanto uma questão de definir o amor, mas de deixá-lo indefinido, como imanência absoluta. acredito que para ser "mal" o amor precisa se distanciar desse sexo natutal, da significação fixa deste. o amor como forma de tornar possível outras relações com o sexo, como elemento que, desterritorializando o sexo, arrasta o sujeito pós-moderno do sexo "seguro" para fora de si...
Postar um comentário