Saiu hoje, na folha, várias notas sobre a saída de Marina Silva do PT. E parece que já começam a emergir agitações a respeito do que sua possível eleição, ou apenas sua candidatura, representariam para a política nacional.
Acredito que haja um certo consenso na esquerda a respeito do que a política governamental do PT representou para as lutas emancipatórias de esquerda no Brasil. Um grande amigo de Porto Alegre chegou até mesmo a levantar a hipótese de este fracasso estar vinculado às origens "trabalhistas" do PT que impossibilitariam-lhe de pensar as políticas emancipatórias que não estivessem diretamente ligadas com o trabalhismo, como as ecológicas, feministas ou, como é o caso de sua mais sincera angústia como criminólogo, da qual partilho, a questão do vagabundo, do criminoso. E que talvez, a candidatura de Marina Silva poderia ter sua importância precisamente pelo fato de ela representar a luta ecológica, vinculada a outras formas de lutas daquilo que meu amigo
Moisés chamou de esquerda não-trabalhista.
Partindo de pressupostos políticos diferentes, gostaria de levantar a hipótese de que o fracasso do PT se dá pelo fato de não assumir até o fim as consequências de se declarar "trabalhista" e que, neste sentido a candidatura de Marina Silva, sua própria figura política, não representa grande avanço no momento de crise em que vivemos.
O grande problema de assumir a democracia como horizonte último das lutas políticas é justamente a impossibilidade de metaforizar as reinvindicações, de guardar no reclame político uma certa "transcendência" que revele um sentido de justiça maior, para além das coordenadas políticas vigentes e contra elas que determinam o significado real, pragmático, de justiça. Uma reinvindicação "trabalhista" como "redução das jornadas de trabalho" tem sua eficácia limitada, é claro, mas isto apenas se não lemos na mensagem um ideal de justiça maior, que reinvindique a própria forma pela qual a justiça é concebida politicamente. Caso contrário, não temos uma luta pela emancipação universal do homem, mas apenas a reinvindicação de direitos da classe trabalhadora por parte do sistema econômico e político vigente.
É claro que isto se aplica a absolutamente qualquer reinvindicação política. E não é este o principal problema das passeatas e protestos pela legalização da maconha? O que isto significa? Simplesmente a indignação de pessoas que gostariam de comprar maconha em qualquer farmácia, ou há aí um ideal de justiça implícito? Me parece que o que temos é a primeira opção, uma reinvindicação "não-metaforizada" e isto é mais fácil de perceber se perguntarmos, como criminólogos, o que seria feito com as pessoas que atualmente vivem do tráfico. O comércio da droga seria realizado por grandes empresas farmacêuticas, drogarias, etc, ou por aqueles que atualmente chamamos de traficantes? Não colocar esta discussão significa jogar mais gente (armada) na miséria absoluta, desprovidos da única forma de trabalho que lhe foi disponível até então.
A democracia, sobretudo em sua forma ocidental multiculturalista, favorece a políticas desmetaforizadas, políticas específicas ecológicas, feministas, étnicas, sexuais, etc, cada uma com uma agenda política diferente, mas que têm em comum o fato de que a democracia é a única forma de traduzir estas reinvindicações, não havendo um ponto em comum entre estas lutas que represente um ideal de justiça e política resistente à democracia e à dinâmica universal concreta do Capital Global. (Uma conseqüência deste efeito ideológico são os levantes de Paris em 2005: neste contexto, a única forma de "explodir" quando a experiência de justiça é insuportável, através de atos violentos que não reinvindicam absolutamente nada! É violência pela violência, ou, linguagem pela linguagem). Por isto a esquerda se enfraquece: o "trabalhismo" de Marx não significava apenas uma melhora para a condição dos trabalhadores tampouco significa ele um movimento político em detrimento daqueles que não estão incluídos no processo produtivo. O proletário, marxista, não é somente o operário, mas aqueles que são destituídos de suas próprias subjetividades se tornando cada vez menos sujeitos. O que temos portanto é uma metáfora para um ideal de justiça que transcenda a lógica dominante da política e da economia encontrando seu único ponto de antagonismo irreconciliável: a contradição capital-trabalho. Isto quer dizer que a contradição capital-trabalho corta todas as diferenças específicas e todas as lutas específicas. Não se confunde diretamente com elas, mas as sobredetermina. Em suma: o "trabalhismo" de Marx, não é simplesmente trabalhismo, mas Comunismo. Tudo o que o "trabalhismo" petista não é, e não será jamais.
É exatamente esta falta de Causa comum e de metaforização das reinvindicações políticas que leva Zizek a afirmar em Elogio da Intolerância que entre a direita reacionária e intolerante e o multiculturalismo liberal-democrata e tolerante, não existe diferença real. Não que ambos sejam simplesmente a mesma coisa, mas a lógica de compromisso com a ideologia é a mesma, vista de pontos diferentes. Por essa lógica compartilhada é que é possível amálgamas entre multiculturalistas e reacionários, como é o caso do polítco holndês Pim Fortuyn que como diz Zizek, era "um populista de direita cujas características pessoais e (grande parte das) opiniões eram quase todas politicamente corretas: era gay, mantinha boas relações pessoais com muitos imigrantes,um senso inato para a ironia, e assim por diante - em resumo, era um bom liberal, tolerante com relação a tudo, menos a sua atitude política básica".
E não é uma figura muito similar que temos com Marina Silva? Duas coisas me deixaram bastante intrigados com a forma como se anunciou a possibilidade de sua candidatura: em primeiro lugar, uma manchete na revista isto é, nenhum veículo de publicação muito esquerdista, falando com um certo entusiasmo na candidatura, e, hoje, um artigo da folha entitulado "Marina sai do partido e diz não ter mais ilusão". A ilusão a que se refere o título é a afirmação de Marina de que não tem mais ilusão em relação a partidos políticos, ou seja: eles não funcionam mesmo! E isto ela diz precisamente ao afirmar sua filiação ao PV. Esta não é a atitude cínica liberal caricata? Como é possível num regime partidário um político anunciar sua filiação a um novo partido ao mesmo tempo em que afirma que isto não é uma atitude sincera, de que nenhum partido, nem aquele a que se está filiando, funciona? Esta atitude não é possível somente pelo cinismo? Após esta indagação, eis que leio um artigo de Kennedy Alencar que revela a postura multiculturalista da senadora Marina Silva, ecologista fervorosa, mulher, evangélica etc, porém enfatizando a forma como esta postura multiculturalista está perfeitamente alinhada com posições conservadoras: sua posição anti-aborto, sua ligação com a igreja católica apesar de evangélica, etc. Claro que, se o modelo de conservador-multiculturalista foi Pim Fortuyn, a senadora talvez seja um pouco ou até bastante diferente. Mas no mínimo vemos a forma estranha de um multiculturalismo disposto a dialogar com as mais diversas culturas, desde que com ancoragem no conservadorismo de cada uma.
Ou seja, o que presenciamos em tempos ideológicos estranhos como os que vivemos, é uma transformação na própria forma do conservadorismo: a velha idéia de que um conservador é alguém preso a suas raízes, agarrado ao pedaço de terra em que nasceu, já é out. Hoje, o conservador é aquele que está disposto a dialogar e a transitar em diversos campos culturais, grupos políticos etc, desde que enfatize sua posição realmente conservadora: o engajamento plural da senadora Marina Silva é uma atitude neurótica obsessiva básica: engajamento, movimento, postura e pulso... para que nada mude!
Se, como já disse nos últimos posts, a tendência política a partir desta crise é um amálgama político entre democracia e totalitarismo, a senadora Marina Silva não apresenta ameaça alguma à dinâmica destrutiva do Capital Global e, de fato, não há muitas esperanças de que em termos de política democrática interna, ela realizará qualquer mudança substancial. Cada vez mais a opção de Rosa Luxembrugo, bem lembrada por István Mészáros, se faz mais clara: "Socialismo ou Barbárie". Se nem o "trabalhismo" do PT teve condições de assumir o fardo e o desafio de seu tempo histórico, que dirá a Senadora Marina Silva.
4 comentários:
Fala velho! Tranquilo?
Eu acho que a armadilha que caíram as lutas por emancipação está muito bem colocada no post. Eu enunciaria da seguinte forma: a política de identidade é uma política de "subjetivação", ainda presa na lógica liberal, e dessa forma acaba perdendo a reivindicação universal. O mesmo ocorre com o trabalhismo fajuto, que vira corporativismo.
Por outro lado, temos que ver essas questões da Marina. Sinceramente, acho uma questão em aberto.
Não considero que o aborto, p.ex, seja uma posição decisiva. Há bons argumentos dos dois lados. Não considero alguém "conservador" por ser contrário ao aborto ou à idéia de que a decisão da mulher deve prevalecer, embora seja minha posição.
Enfim, vamos ver como as coisas vão rolar...
Fala, meu caro!!
Então, só acho que o problema da defesa da criminalização do aborto, de alguma forma, desconsidera as condições estruturais da prisão. É neste sentido que vejo algo pouco esquerdista neste ponto. Claro que é possível o posicionamento contrário ao aborto sem que isto implique necessariamente um conservadorismo. Mas acho que a defesa da criminalização do aborto é que é complicada como agenda política de esquerda.
Além disso, como deveria reafirmar, é claro que não considero a Marina tão conservadora quanto o Berlusconi (ultimamente tenho repetido demais este nome... mas é realmente uma figura muito tragicômica). Mas acho que a minha provocação à figura da Marina é mais no sentido de que não vejo como ela possa representar uma mudança qualitativa para a política brasileira. E isto justamente porque consigo ver o perfil da Marina perfeitamente adequável à dinâmica anti-democrática que creio que esteja por vir. Em suma, acho que se o trabalhismo do PT representou um corporativismo político nada popular, tampouco o ecologismo da Marina consegue se posicionar como resistência política.
Mas concordo. Vamos ver como as coisas vão rolar.
Aquele Abraço!
Não sei não. Acho positivo. Me agradaria ver o criacionismo pregado nas escolas.
Oi.
Cheguei até seu blog hoje,porque hoje mesmo li o prefácio de A Visão em Paralaxe. Aí, fui olhar o orkut, pra ver se alguém me dava uma luz. E vi seus comentários, seu perfil e o link pro blog. Estou explicando isso pra dizer que tenho também o interesse na visão teórica do cara, mas que estou ainda patinando bastante. Em relação ao post, achei muito bem estruturado o raciocínio todo, tenho um medo danado desse pluralismo desembestado, e tenho medo de muitas coisas. Mas relativamente à candidatura da Marina, apesar de saber que o "otimismo é nossa preguiça", no dizer do Gramsci, tenho uma esperança de que ela não venha a representar tanto o capital transnacional pós-ecológico, mas que simplesmente "cave" um diálogo maior entre nossos movimentos sociais (que depositam bastante expectativa nela) e nosso governo. É claro que se a direita vai tirar mais ou menos partido disso depende como a esquerda vai conduzir a "cisão", ou, melhor dizendo, a ato de assumir a cisão. Temos sido muito autofágicos e isso sim me dá medo. Porque se por um lado há que se questionar o modelo de desenvolvimento, por outro, como sempre, quem está na vanguarda do modelo "alternativo" é o capital, e quem disser que tem uma alternativa construída está mesmo mentindo. Nesse sentido, fomentar a crítica pela construção da consciência de classe não nega a possibilidade assumir, nesse período histórico de "recuo", um papel na condução "democrática" do processo. Assim, manter-nos no governo enquanto a esquerda que somos, deveria ser prioridade, na minha opinião.
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