terça-feira, 15 de setembro de 2009

Inconsciente, política e economia pós-modernos.

[Depois de algum tempo dedicado a escritos mais "jornalísticos"... já é hora de voltar para a filosofia.]

Uma das características mais marcantes do pensamento pós-moderno é o seu completo "desapego" à economia política. Toda análise político-econômica é prontamente descartada como reducionismo em nome do recurso argumentativo à multiplicidade e à complexidade como formas de impedir uma análise coerente da sociedade. Em termos freudianos, a economia política, para o pensamento pós-moderno, tem a estrutura de um tabu. Ninguém toca na economia política (não é por menos que mesmo os pós-modernos socialistas, como Boaventura de Souza Santos, sequer esbarram em análises político-econômicas) e quem toca vira, ele próprio, um tabu.[*]

Gostaria de enfatizar, na esteira da análise de Fernando Marcellino, a frase de Lacan "o inconsciente é político", para desdobrar como encarar a palavra político nesta frase. A intenção de Lacan, aqui, é demonstrar como uma ordem simbólica (a cultura, as normas implícitas que regulam a sociedade, a linguagem em geral) é o que "parte o sujeito em dois", que o aliena e o obriga a assumir uma posição de fora de sua própria subjetividade para aprender a falar e a agir socialmente. E portanto o sujeito como "ser falante" sempre fala em nome de um Outro, ou antes, o Outro fala através dele. Mas o que é este Outro?

Paradoxalmente a frase "o inconsciente é político" é talvez a menos enigmática das frases de Lacan. O Outro nada mais é do que a forma como uma sociedade se organiza politicamente de forma a orientar a atividade de indivíduos que façam parte dela e que tenham, portanto, de se sociabilizar a partir das normas impostas por este Outro para serem considerados indivíduos "normais". O único "retoque" que talvez pode ser feito à frase de Lacan é que, como afirma Zizek, a política precisa sempre ser suplementada pela economia política. Em outras palavras, a política e a Economia são dois pontos de vista irredutíveis, porém inseparáveis, sobre este Outro. Desta forma não só o inconsciente é político, mas o inconsciente é também econômico - como afirmou meu amigo Fernando.

Isto impõe que todo auto-questionamento e toda auto-crítica seja invariavelmente um olhar sobre o desenvolvimento político e econômico da sociedade que, hoje, como inovação histórica de nossos tempos, é invariavelmente global. Contrariamente aos postulados multiculturalistas (e desconstrucionistas), portanto, a auto-crítica nunca deve ser realizada com vistas à personalidade individual, afinal esta é apenas uma resposta, uma particularidade, da lógica Universal que regula a política e a economia. E, como não poderia deixar de ser dito, vale lembrar que este Universal não é uma totalidade fechada, estanque, idêntica a si mesma... mas um Um que se atualiza historicamente precisamente a partir de um antagonismo inerente e irreconciliável. Por exemplo, o capitalismo - ou melhor o Capital - não é uma totalidade fechada de um mecanismo com peças muito bem colocadas cuja estrutura é para sempre inalterável. Mas uma plasticidade eternamente mutável que se atualiza sempre a partir da matriz antagonística Capital-Trabalho. Assim como as sociedades modernas são sempre diferentes enquanto reproduzam, todas elas, a matriz antagonística chamada de Luta de Classes. (Relações de Produção e Forças produtivas de um lado e Luta de Classes de outro são exatamente os dois antagonismos referentes aos pólos suplementares da Economia Política e da Política, respectivamente).

O recurso argumentativo pós-moderno à multiplicidade tem o efeito de obliterar sempre este antagonismo inerente à Universalidade e por mais que doa aos pós-modernos, não consegue nunca evitar a universalidade, mas apenas mascará-la como terreno pacífico, harmônico, não antagônico. Só para dar alguns exemplos da lógica do recurso à multiplicação: os pós-modernos, por exemplo nos dizem que não existe um sujeito mas uma pluralidade infinita de personalidades multicoloridas absolutamente diferentes e singluares. É claro que um pouco de dialética nos ajudaria a entender o que se passa implicitamente neste argumento: enquanto todos são absolutamente diferentes e peculiares, todos são iguais precisamente nesta diferença absoluta. Portanto O Sujeito (Universal) aparece aqui nas entrelinhas como um simples conjunto aiôntico (para citar Deleuze), ou em outras palavras, como uma simples reunião amorfa (e pacífica!) de todas as subjetividades singulares. O pensamento metodologicamente orientado pela dialética - mais especificamente pelo materialismo dialético - ao contrário assume explicitamente o Universal como um Um que não coincide consigo mesmo, voltando ao exemplo: as milhares de subjetividades singulares e diferentes, neste caso, seriam simplesmente a resposta, a tentativa (sempre fracassada) de reconciliação de um antagonismo inerente à própria idéia de sujeito, ao próprio Sujeito Universal , para sempre cindido entre consciente e inconsciente, por exemplo. Da mesma forma as sociedades não são singularmente diferentes entre si, mas tentativas concretas de reconciliação do antagonismo inerente à própria idéia de sociedade chamado luta de classes; as múltiplas formas culturais e políticas que o Capital encontra para se "instalar" num determinado local também são respostas concretas à contradição Capital-Trabalho, etc.

Voltando ao "o inconsciente é político-econômico", como podemos ler o inconsciente pós-moderno?

É possível identificar o pós-modernismo como uma passagem do significado para o significante, em outras palavras, como a renúncia à noção de Verdade, de um significado seguro (porque real e concreto) da realidade em nome de uma certa noção de linguagem que enfatiza a produção de sentido como efeito das infinitas interações entre os múltiplos símbolos. Em outros termos o pós-modernismo se posicionaria contra o modernismo a partir da noção de que qualquer acesso a um sentido concreto ou a uma Verdade seria impossível porque o ser humano está imerso, para sempre, num oceano de linguagem e de simbologias, e a realidade (como sendo aquilo que está fora da linguagem) está para sempre envolta numa "capa de sentido" que impossibilitaria os sujeitos de saber qual é a "realidade em si mesma" ou qual é a "verdade em si". Com isso todo o sentido em vez de ser referenciado a alguma Verdade Divina, localizada fora do mundo (humano) da linguagem, seria simplesmente o efeito da interação e da inter-relação entre os milhares de símbolos e palavras que compõem nosso mundo cultural/simbólico. Com isso cada palavra ou símbolo não significa algo concreto e real, mas seu significado é produzido pela troca que ela realiza entre as outras infinitas palavras ou símbolos, gerando um efeito de sentido.

David Harvey, em seu Condição Pós-Moderna nos dá uma dica: não seria este processo um correlato da lógica exacerbada de mercado gerada com a modernidade capitalista? Vejamos: na teoria marxista o Valor da mercadoria também é um Um para sempre cindido, cindido entre valor de uso e valor de troca.

Valor de uso seria o quanto a mercadoria vale em referência à utilidade concreta que ela traz para a vida humana: uma camisa tem valor não só de mercado, mas é também útil ao homem que precisa se vestir e ao valor atribuído a esta utilidade direta de que pode desfrutar o proprietário da mercadoria se chama valor de uso.

Valor de troca seria o quanto a mercadoria vale em referência à sua circulação no mercado, ou seja, à capacidade de esta mercadoria ser trocada por outras mercadorias: a mesma camisa guarda valor não só em relação à utilidade que ela serve, mas também em relação à quantidade de produtos que posso adquirir se trocar por esta camisa, o que implica necessariamente numa diferenciação de várias camisas conforme o grau de sofisticação do produto que não necessariamente serve para alguma utilidade concreta.

Pois bem, este antagonismo do valor funciona sempre e sem equilíbrio. Mas o mercado capitalista precisa cada vez mais acentuar o valor de troca das mercadorias, o que possibilita uma tendência de aumento daquilo que Marx chamou de fetichismo da mercadoria o que implica a perda progressiva - que tende a zero mas que nunca chega a zero - do valor de uso, da utilidade concreta do produto em nome do aumento de seu valor de troca, do valor monetário inscrito em cada produto que possibilita que ele, com maior ou menor sucesso, faça as vezes de dinheiro, momentaneamente. Em termos mais abstratos: cada mercadoria tem importância pela forma como ela se liga e se interrelaciona com outras mercadorias, e não com uma utilidade natural que a liga com o lado de fora do livre mercado.

Voltemos ao trecho anterior: "Com isso cada palavra ou símbolo não significa algo concreto e real, mas seu significado é produzido pela troca que ela realiza entre as outras infinitas palavras ou símbolos, gerando um efeito de sentido". Acredito que podemos ler a mesma frase trocando algumas palavras: "Com isso cada mercadoria ou produto não tem utilidade concreta e real, mas seu valor é produzido pela troca que ela realiza entre as outras infinitas mercadorias ou produtos, gerando um efeito de valor [que podemos chamar de fetichismo da mercadoria]".

Este é um primeiro passo para pensarmos no inconsciente pós-moderno/pós-saussureano e, quem sabe, para uma economia política lacaniana.

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[*] É interessante ver como toda a cruzada pós-moderna contra as "meta-narrativas" no final das contas é uma grande meta-narrativa, com a diferença específica de ser uma meta-narrativa despreocupada com qualquer causalidade, uma meta-narrativa à la Deus ex machina: a desculpa pós-moderna para deixar de lado a economia política é o argumento de que passamos da sociedade de produção para a sociedade de consumo... mas em termos econômicos, qual foi o grande Evento dos últimos anos que teria transformado tanto o desenvolvimento do Capitalismo para que ele pudesse prescindir da exploração do trabalho (subumano)? Que teoria econômica consegue demonstrá-lo?

2 comentários:

Fernando Marcellino disse...

“os pós-modernos [crazy brains], por exemplo nos dizem que não existe um sujeito mas uma pluralidade infinita de personalidades multicoloridas absolutamente diferentes e singualres”. Será a crazy brainização uma tendência eminentemente pós-moderna ou, ainda pior, o modo de funcionamento da constelação ideológica hoje (pós-moderna) já é um sustento “teórico” para os crazys brains?

Unknown disse...

respondendo a sua pergunta final, bem como a do Fernando: acho que o grande Evento trata-se da representação do infinito realizada pelo golfinho em forma de anéis aquáticos, como bem nos demonstrou o admirável crazy brains. vale lembrar que disto deriva a união dos três cérebros.
brincadeiras a parte, ótimo texto!