quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Kelsen no divã - Parte I

Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito tenta analisar o mecanismo de legitimidade/validade do ordenamento jurídico a partir de uma simples reflexão: se toda norma jurídica é válida porque uma norma superior diz que ela é válida, então haverá uma norma superior a todas as outras, a Constituição, que determina positivamente a validade de todas as outras normas. Mas então que norma diz que a Constituição é válida?

Kelsen como bom kantiano vai chegar ao artefato argumentativo da norma fundamental. Ora para que todo o ordenamento jurídico no mundo tenha validade, é necessário supor que exista uma norma sem conteúdo explícito cuja função é apenas emprestar validade a todo o ordenamento. Como o exemplo do próprio jurista alemão, é mais ou menos como se eu me perguntasse porque devo seguir as ordens de meu pai? E a resposta (para um religioso) será porque Deus ordenou que seguíssimos as ordens de nossos pais. Pois bem, e quem ordena que eu cumpra as ordens de Deus? Esta pergunta não pode ser respondida, devendo eu supor que exista um fundamento de validade para as ordens divinas.

Não é este raciocínio muito similar a noção de Pai primitivo em Freud? Afinal, a lei que determina a entrada do sujeito na cultura é, ela mesma, localizada fora da cultura, como ser pairando acima da realidade mundana. Claro que aqui podemos ir até Lacan para pensar a diferença entre masculino e feminino.

Masculina é a posição diante do Pai Primitivo, do falo ou lei da castração, da seguinte forma: se o pai é a própria lei então o pai pode tudo, não é barrado pela lei. Assim o pai persiste enquanto ser total e completo não contraditório que pode gozar plenamente sem restrições.

Feminina é a posição diametralmente oposta que parte do princípio de que se o pai é a própria lei da castração, então longe de ser ele total e completo, ele é castrado da própria lei, em outras palavras: ele é castrado da própria realidade que surge com a lei.

Daí a noção lacaniana de significante-mestre: para que haja a formação da ordem simbólica, do conjunto de significantes (símbolos ou palavras) é necessário que uma palavra ou símbolo em especial cumpra a função de simbolizar a passagem da realidade pré-simbólica para a realidade simbólica. Em outras palavras, esta palavra ou símbolo vive num paradoxo irresolúvel: ela simboliza o insimbolizável, a próprio corte que surge com a ordem simbólica.

Neste sentido não poderíamos lacanizar Kelsen para, em vez de pensar uma norma fundamental pressuposta que empresta validade ao direito, pensar a própria constituição como uma norma fundamental à la significante-mestre?

Em vez de uma norma pressuposta que seja total e completa, como a validade do ordenamento jurídico brilhando soberana acima da ordem jurídica, como um sol que irradia validade, não poderíamos pensar uma norma posta que não coincida consigo mesma, uma vez que representa o irrepresentável?

[Para uma reflexão posterior: quais seriam as conseqüências de se imaginar um Kelsen hegeliano?]

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